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  • Foto do escritorFelipe Vidal

Um despretensioso ensaio sobre tomar partido à distância no conflito entre Israel e Palestina

Atualizado: 10 de ago. de 2023

Seria no mínimo leviano tentar descrever de maneira definitiva o que ocorreu recentemente no conflito entre Israel e Palestina, seja pela complexidade histórica dos fatos, seja pelo conflito de narrativas (e interesses) que contamina o debate desde sua base. Ainda que exista um prévia simpatia pelo lado árabe, justificada por convicções pessoais e pelo próprio propósito que intitula este projeto, há também uma série de fatores a levantar a fim de evitar a desinformação, seja para qual lado for.


Antecedentes e pavimentação do conflito


Jerusalém: cidade sagrada para as três principais religiões abraâmicas

Na impossibilidade de voltar ainda mais na história milenar da região, acredito ser suficiente retornar até a criação do Estado de Israel para um bom entendimento do que hoje ocorre por lá. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente no ano de 1947, foi idealizado um plano da Organização das Nações Unidas (ONU) que previa a partilha do território palestino, recém desocupado pelos britânicos, entre árabes e judeus. Além de dois Estados independentes, o plano contava com a instauração de um regime internacional para administrar Jerusalém, dado que a cidade é considerada sagrada para as três principais religiões abraâmicas.


Combatentes na desastrosa Primeira Guerra Árabe-Israelense

No entanto, o ano de 1948 ficou marcado pela declaração de independência do Estado de Israel, algo que nunca ocorreria com o lado árabe da disputa. A insatisfação da comunidade árabe - representada pelas lideranças nacionais - perante as condições impostas foi, à época, o principal motivo para uma resolução unilateral, se iniciando assim a beligerância entre os envolvidos. É bem verdade que o clima já não era amistoso entre os habitantes da região há algumas décadas, mas podemos considerar esse um marco de "oficialização" dos conflitos. O imediato ataque de Síria, Líbano, Iraque, Jordânia e Egito ao recém-formado Estado de Israel ficou conhecido na História como a Primeira Guerra Árabe-Israelense e terminou, em 1949, com um saldo trágico às forças árabes. O território demarcado aos judeus, que já ultrapassava os 50% da totalidade da região segundo a resolução da ONU, chegou aos 73% com o fim do conflito e palestinos desalojados nesse período nunca mais puderam reaver suas casas.


A década de 50 não diferiu grandemente do restante dessa conturbada relação e contou com inúmeras investidas de militantes palestinos sobre Israel, bem como tentativas de ocupação israelense sobre a Faixa de Gaza. Mais um marco nesse conflito ocorreria em 1964, quando foi criada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em prol da reivindicação dos direitos perdidos pelo povo palestino. A luta armada é apenas uma das ferramentas desse complexo grupo, que não se caracteriza como um partido político per se, mas concatena várias frentes políticas dentro de si. A vertente mais representativa delas é o Fatah, cuja teve em sua liderança a controversa figura de Yasser Arafat.


Ocorrida em 1967, a Guerra dos Seis Dias foi batizada devido ao tempo que Israel precisou para tomar para si os territórios da Faixa de Gaza, Cisjordânia, Península do Sinai, Colinas de Golã e Jerusalém Oriental. A despeito de resolução da ONU, Israel manteve a ocupação territorial, culminando na chamada Guerra do Yom Kippur, em 1973. Na ocasião, árabes derrotados no conflito anterior formariam uma coalizão em busca da retomada daquilo que consideravam seus territórios por direito. A vitória acachapante por parte dos israelenses contou, no entanto, com uma resposta política, pois uma consequência direta desse ocorrido foi a fundação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), elevando os preços da commodity e levando o sistema capitalista a sua maior crise desde 1929.


Líder espiritual do Hamas, Sheikh Ahmed Yassin, rodeado pela militância armada do grupo

Avançando consideravelmente na cronologia, é no fim da década de 80 que mais um movimento marcante toma conta da região: a Primeira Intifada. Ocupada por militares israelenses, a Faixa de Gaza foi palco de revoltas populares por parte do povo palestino que habitava os assentamentos locais. Fazendo uso de paus e pedras, a comunidade local avançou frente os imponentes tanques israelenses e gerou uma reação considerada desproporcional até mesmo por boa parte da comunidade internacional. Tanto Faixa de Gaza quanto Cisjordânia passaram a presenciar massacres pelo uso de força desmedida contra uma população desprovida de recursos. O ano de 1987, data da eclosão da Primeira Intifada, é fundamental para a compreensão do ocorrido em 2021, uma vez que uma das consequências do conflito foi a fundação do Hamas (acrônimo em árabe de Movimento de Resistência Islâmica), grupo nacionalista palestino com braços políticos, armados e religiosos.


Encontro entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat na ocasião dos Acordos de Oslo

Uma solução para o imbróglio parecia ser vista no horizonte quando do famoso aperto de mão entre Yasser Arafat e Yitzhak Rabin, primeiro-ministro israelense à época, sob mediação de Bill Clinton, em meados da década de 90. Conhecidas como Acordos de Oslo, as negociações deram origem à Autoridade Nacional Palestina, que seria o órgão responsável por gerir a Faixa de Gaza e determinados territórios da Cisjordânia, ou seja, o reivindicado Estado da Palestina, ainda que sem uma declaração de independência. O planejado passou a ter um reflexo diferente na realidade quando o extremismo judeu ganha força em Israel, a ponto de culminar no assassinato do supracitado primeiro-ministro. A falha na desocupação dos territórios palestinos, sendo essa uma condição sine qua non para a implementação dos acordos, impossibilitou o sucesso da operação.


Estopim recente


Bairro de Sheikh Jarrah

O gatilho para nova escalada das tensões na região veio de uma polêmica reivindicação territorial por israelenses no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém. Apesar do local pertencer originalmente ao lado palestino da cidade sagrada, diversas instâncias israelenses tem cedido ao apelo judeu e determinado o despejo de árabes que ali habitam. O cerne da defesa judia remete ao século XIX, quando as terras que hoje correspondem ao bairro, ainda sob domínio do Império Otomano, teriam sido compradas por seus antepassados.


O estabelecimento de judeus por lá não foi uma questão até 1948, quando da supracitada Primeira Guerra Árabe-Israelense. Uma das consequências diretas do conflito foi a ocupação da parte oriental de Jerusalém pela Jordânia, que contou com a ajuda do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) para construir casas em Sheikh Jarrah a fim de abrigar famílias palestinas refugiadas. Somente em 1967 o Estado de Israel voltaria a exercer presença significativa na região, se iniciando o litígio judicial em relação às posses de terreno no famigerado bairro.


Como pode-se perceber, até mesmo esse ponto em específico está longe de ser uma questão simples e com uma resposta objetiva, dado que transcende os limites judiciais hoje estabelecidos por lá. A maior polêmica, que polariza muito o debate até mesmo ao redor do mundo, está no fato de palestinos não compartilharem do mesmo direito de reivindicar terras em territórios hoje dominados por Israel. Sendo assim, uma decisão favorável ao lado judeu para esse caso abriria um precedente temerário.


Mesquita de Al-Aqsa

Protestos palestinos contra a desapropriação, que ainda precisa passar pelo crivo da Suprema Corte israelense, acabaram gerando um clima de tensão que levou ao último dia 10 de maio. A data marca a celebração, por parte de Israel, da ocupação territorial fruto da Guerra dos Seis Dias, no entanto, tal ato não foi bem recebido pelo lado árabe da história e o resultado foi um confronto diante da mesquita de Al-Aqsa, considerada o terceiro local mais sagrado do mundo para o Islã. O saldo conta com mais de 300 palestinos feridos e novo uso de força desproporcional, além do agravante de trazer consigo a proibição temporária da entrada de árabes no complexo, justo no período do Ramadã.


Hamas e seus métodos pouco ortodoxos


Dadas as condições, seria razoável até aqui dizer que todo problema poderia ser amenizado através de maior moderação israelense, reabrindo as possibilidades negociais a nível diplomático. Contudo, essa tese, defendida por muitos ativistas ao redor do mundo, pode ser considerada um tanto simplista e o principal motivo para isso é o fato da Palestina ter adquirido suas próprias complexidades ao longo de sua história, ainda que não tenha se estabelecido como um Estado independente.


Encontro, em 2014, entre Hamas e Fatah a fim de formar governo conjunto

A situação política palestina hoje é de fragmentação e conflitos internos, contando com intensa disputa de interesses e tentativas de manipulação da opinião pública. Enquanto a ANP segue exercendo domínio sobre a região da Cisjordânia, através do Fatah, a Faixa de Gaza passou a se tratar de um caso ainda mais delicado no já intrincado problema a partir de 2007, quando o Hamas conseguiu expulsar seu rival interno da região e tomar para si o controle territorial, após larga vitória eleitoral no ano anterior.


Abrindo parênteses para detalhar melhor do que se trata o Hamas, apenas citado anteriormente de forma vaga, vale a pena relembrar que seu surgimento remete à Primeira Intifada, se comprometendo, à época, com a destruição do Estado de Israel. O programa inicial do movimento contava tanto com o braço armado a fim de cumprir esse objetivo, quanto com ofertas de iniciativas visando o bem-estar social da população palestina.


Membros das Brigadas Izzedine al-Qassam, o braço armado do Hamas

Classificado por EUA, União Europeia e outros protagonistas do cenário global como uma organização terrorista, o Hamas nunca se furtou de exercer oposição aos acordos de paz, uma vez que seu estatuto original previa uma Palestina que se estende ao atual Estado de Israel, a chamada Palestina Histórica. Os anos 90 foram o principal palco dessa intransigência em relação à pacificação, especialmente através da promoção de diversos atentados suicidas contra israelenses. É importante ressaltar que o Hamas não se autoproclama contrário a judeus, mas ao movimento sionista.


O novo século nos trouxe muitas novas faces para o conflito, mas também deu ao Hamas o papel de protagonismo nos mais recentes acontecimentos da região. No que tange as políticas públicas, o populismo sempre foi uma postura recorrente ao grupo, acusando o Fatah de ineficácia e corrupção ao implementar serviços de atendimento ao público, seja no âmbito da saúde, da educação ou qualquer outro serviço básico. A postura violenta adotada por seu braço armado esteve, por um bom tempo, longe de incomodar a população palestina e as operações de suicídio, naquilo que ficou conhecido como Segunda Intifada, foram vistas por muitos como martírios que vingariam as perdas territoriais na Cisjordânia.


Histórica visita do emir catari à Faixa de Gaza, em apoio ao governo do Hamas

Após mais alguns anos de ataques intermitentes de ambos os lados com bravatas pontuais intercaladas, o Hamas chegou a 2021 consolidado na região para além de sua atuação armada, contando, no entanto, com duras sanções internacionais motivadas pela agressividade de suas atividades. Em contraponto, a facção palestina conta com o apoio do Catar, algo que já foi ilustrado até mesmo pela histórica visita, em 2012, do xeque Hamad ben Khalifa al-Thani, à época emir catari. Para além do suporte financeiro, tanto declarado quanto extra-oficial, o apoio do país do Golfo tem se mostrado importante também pela relevância do papel exercido pela rede de notícias Al Jazeera em relação ao que ocorre na região. Uma vez que se trata de uma agência estatal, é válido que haja ao menos um questionamento inicial quanto aos possíveis conflitos de interesse nas narrativas adotadas pela mesma.


Com os acontecimentos relatados anteriormente, em referência ao bairro de Sheikh Jarrah, o Hamas se viu em uma situação intrigante: como se posicionar frente a essa suposta injustiça na iminência de um complexo período eleitoral? A decisão foi por realizar ofensivas contra Israel se utilizando de artilharia aérea de procedência duvidosa. Se trataria da união do útil com o agradável, já que atacar os vizinhos não chegava a ser uma novidade para o Hamas e o populismo daí praticado, através da propaganda realizada localmente acerca dos ocorridos, tampouco estava longe da política habitual do grupo. Nesse contexto de ódio mútuo, cabe destacar alguns discursos de lideranças proeminentes do Hamas cujo conteúdo impulsiona uma reflexão sobre até que ponto os limites do seu propósito de luta estariam sendo respeitados. Em tais falas fica latente uma extrapolação da guerra antissionista e, consequentemente, por autodeterminação territorial, enquanto avança no sentido de um fomento ao ódio contra judeus.


Paz sem voz e poucas perspectivas


Como era de se esperar, dadas as motivações para a manutenção do atual conflito, ambos os lados reclamam para si uma pretensa vitória com a adoção do cessar-fogo. Enquanto Netanyahu alega ter "desferido um golpe severo contra as organizações terroristas e restaurado a calma", na Palestina o Hamas insiste na ideia de que os punhos seguem cerrados, contando com alto-falantes de mesquitas proclamando "vitória da resistência". Dessa vez a facção palestina contou também com apoio aberto do Hezbollah, grupo xiita libanês que chamou o ocorrido de "rodada heroica de confronto". Em suma, abusos ocorrem do lado israelense, velados ou não, e não haverá cooperação do Hamas para com esforços de pacificação que não passem pelo fortalecimento do grupo e de seus propósitos controversos. Sendo assim, as perspectivas futuras seguem pouco animadoras para o povo palestino.


A questão humanitária na Palestina é, sem dúvida, um assunto urgente, bem como é inegável a responsabilidade israelense sobre boa parte do contexto, mas, na busca por uma solução ao problema, é igualmente necessário resistir à tentação de abraçar um discurso como verdade única. Detalhar as condições de vida de um palestino médio não foi o objetivo deste ensaio, focado em elucidar as condições que cercam o conflito mais recente. Não há dúvidas quanto à necessidade de conscientização acerca das dificuldades vividas por essa minoria étnica, que não pode ser reduzida à ação do Hamas. Dito isso, ainda que a população civil palestina em sofrimento seja a maior vítima de todo o cenário, me incomodam consideravelmente, a título de exemplo, situações como a presença de bandeiras palestinas em protestos legítimos no Brasil contra o (des)governo de Jair Bolsonaro. Talvez muito disso se deva à associação imediata com a incoerência das bandeiras de Israel presentes em meio ao verde e amarelo dos movimentos que culminaram no golpe contra Dilma Rousseff. Todavia, como sempre, tudo que extrapola os fatos não passa de divagação pessoal e talvez minhas reflexões se relacionem mais com o trauma nacional do que com uma interpretação legítima dos ativismos.

 

Para saber mais:


- Livro Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões, de Karen Armstrong, publicado pela editora Companhia das Letras;


- Livro Uma história dos povos árabes, de Albert Hourani, também publicado pela editora Companhia das Letras;



- Artigo A guerra sem futuro, por Arnaldo Niskier para O Globo;




- Matéria Hamas: o que é o grupo palestino que enfrenta Israel, também da BBC News Brasil;


- Reportagem Confronto em Jerusalém deixa mais de 300 feridos em mesquita, por Jeffrey Heller, da Reuters, reproduzida pela Agência Brasil.


Foto: Politize

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