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  • Foto do escritorRaoni Gonçalves

Resenha de "Cartas Para Minha Mãe"

Atualizado: 10 de ago. de 2023


No livro “Cartas Para a Minha Mãe” (2006), de Teresa Cárdenas, uma menina* de 12 anos passa a morar com as primas, tia e avó após a morte de sua mãe e começa a escrever cartas para aliviar a saudade em seu luto, já que se vê sozinha por também não conhecer o pai e não ser bem-vinda em seu novo lar.


O livro é sugerido como uma literatura infanto-juvenil, mas ainda assim não deixa de ser um livro forte, de momentos marcantes e dolorosos até mesmo para adultos, versando sobre o racismo e a solidão que a menina vivencia por ser uma negra retinta e crespa na ilha de Cuba.


As cartas serviam como uma forma de resgatar o afeto e amor que encontrava em sua mãe. Ainda assim, o livro não se resume a lamentação e luto. Suas vivências tornam as cartas uma espécie de diário, passando desde sua vida escolar e familiar até aspectos simbólicos de sua vida pessoal, como suas reflexões, a transição de uma criança se tornando adolescente, o despertar de sua consciência racial, relações inter-raciais e a religião iorubá de sua avó em seu cotidiano.


A leitura é simples, mas não sinônima de leve. Pode ser difícil ler o que a menina sofria, principalmente no início, por ser muito nova e não entender que tudo aquilo era por conta de sua cor de pele e como isso afetava sua autoestima. Contudo, ainda que resultasse em insultos como “bembona”**, ela sempre demonstrou orgulho de sua ancestralidade e foi passando a construir amor por seus traços e cabelo, ao entender que suas características seriam as marcas que a aproximavam de sua mãe.


Além disso, as reflexões sobre as relações raciais são marcantes, ainda que inicialmente em um tom ingênuo, por demonstrar como as pessoas da ilha como um todo davam valor à cor da pele e ao cabelo.


Sendo quase impossível não lembrar de “A Redenção de Cam”, Modesto Brocos***, ao retratar Fernando, marido de sua tia, por conta do apoio incontestável à sua entrada na família por ser um homem branco e a sensação de vitória que isso trazia a seus familiares, resquício do projeto de embranquecimento da população latino-americana pós-abolição como um todo.


Em adendo, existia a solidão dela enquanto mulher negra e a carência afetiva que isso lhe acarretou, somado ao fato da perda de sua mãe. O que fez com que se apaixonasse por Roberto, um homem branco, ainda que, pelo contrário do que lhe era influenciado, sua idealização fosse ter um relacionamento afrocentrado. Ela passa a ver nele alguém que a distancia da solidão e, com isso, o livro também aborda as vivências de um relacionamento interracial e a solidão da mulher negra em volta dessa relação.


Ao passo que toda ingenuidade da autora das cartas se esvaía, a construção de sua identidade enquanto mulher negra se moldou. As cartas acompanharam seu processo de superação do luto e tornaram aquele compilado em um local de acolhimento que ela buscava em uma relação materna que não encontraria mais. Dali ela criou o seu próprio mundo e dali ela amadureceu.


Cartas Para Minha Mãe (2006) aborda assuntos tão atuais da realidade brasileira que mais parece um livro nacional que cubano. O sentimento de solidão, a percepção dos olhares racistas e os apelidos acompanham a menina até o final do livro, junto a sua esperança por um futuro melhor e respostas mais claras sobre suas indignações. O que faz deste livro não ser um livro de sonhos, parece uma história possível de acontecer e muito aberta a gerar identificação ao longo da leitura. O livro tem poucas páginas, sendo possível terminá-lo em algumas horas para leitores ávidos e é uma ótima indicação para quem se interessa por "escrevivências".

 

* O livro não indica o nome da autora das cartas, por serem redigidas em primeira pessoa.

** “Bembona” seria “bocuda” em um sentido pejorativo no espanhol cubano, referente a uma pessoa de lábios grossos, de traço negroide.

*** O pintor racista não é do Sul Global e não há nenhum tipo de homenagem a ele nesta resenha, mas trazer a obra condiz com a reflexão geral sobre o impacto da política de branqueamento do pós-abolição.


Foto: Teresa Cárdenas, 2015, Wikimedia Commons, por Marcello Casal Jr/Agência Brasil

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