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  • Foto do escritorTomás Paixão

Os "Estados falidos" e o colonialismo: palavras nunca serão apenas palavras

Atualizado: 11 de ago. de 2023

Nas últimas semanas, o Líbano virou o assunto do momento. Nas mídias sociais e noticiários de todo o mundo, a explosão que devastou a região portuária de Beirute vem sendo reprisada várias vezes, cada vez com um ângulo mais impressionante. Tal espetáculo programático, geralmente acompanhado por uma variedade de teorias da conspiração, é apresentado como mais uma tragédia dentro de um Estado em ruína econômica e política. Em algumas mídias, como o Financial Times e a Al Jazeera, comenta-se até mesmo que o Líbano está caminhando a passos largos para se tornar um Estado falido. Mas, afinal, como poderíamos definir a falência de um Estado?

O Fragile States Index (FSI, antes chamado de Failed States Index, ou seja, Índice dos Países Falidos) publicado pelo think tank Fund for Peace em parceria com a influente revista estadunidense Foreign Policy desde 2005 é um dos métodos que tem essa função. Nele, diversos indicadores culturais, sociais, econômicos e de coesão interna são utilizados para avaliar a vulnerabilidade de um Estado e sua probabilidade de entrar em conflito ou colapsar. Dos diversos indicadores, incluem-se alguns como a legitimidade do Estado, a existência de direitos humanos, o nível de declínio econômico e de pobreza, a interferência externa e pressões sobre determinados grupos da sociedade.

Mesmo que possam ter papel relevante em quebrar barreiras e paradigmas estabelecidos, os números frios dos dados estatísticos também podem reforçá-los. As escolhas de variáveis e métodos utilizados para coletar os dados são influenciados por uma gama de valores, preconcepções e experiências que questionam a suposta imparcialidade do método científico. A Estatística não está deslocada do jogo político que move o mundo e da colonialidade que forma nossos ideais. Pelo contrário, ela é uma ferramenta que influencia e é influenciada diretamente pela luta entre atores com interesses bem definidos. Índices como o Fragile State Index (FSI) não fogem dessa problemática e recebem críticas constantes.

Essas críticas são estruturadas em um conjunto de críticas similares, que rememoram a prevalência do colonialismo na construção do índice: a generalização do conceito “fragilidade”; na crença de que a solução para os problemas dos Estados se encontra no aprofundamento da estrutura estatal; na falta de consideração da viabilidade de outras formas de organização senão a estrutura estatal; no eurocentrismo da escolha de indicadores; e nas divergências sobre a real utilidade do índice. Nos últimos anos, algumas transformações ocorreram na formulação do FSI em meio a essas discussões (a exemplo da já citada mudança de nome de Failed State Index para Fragile State Index), mas em especial a utilidade do índice para a comunidade cientítica/atores políticos continua sob disputa.

A designação de um país como um Estado falido ou frágil pode trazer efeitos práticos na realidade de seus cidadãos?

Principalmente na área de política externa, cada palavra utilizada tem um propósito bem-definido. Tendo isso em mente, no ano passado, o presidente chileno Sebastián Piñera, em reunião com o presidente dos Estados Unidos Donald Trump, utilizou esta terminologia para se referir à Venezuela, adicionando que uma possível interferência de outros Estados no território venezuelano era uma “responsabilidade ética” da comunidade internacional. O vice-presidente dos Estados Unidos Mike Pence fez comentários similares, buscando criar um imaginário coletivo que justificaria uma intervenção. Na política internacional, o termo Estado frágil parece estar sempre associado à criação de um argumento que justifique intervenções estrangeiras, geralmente com evidente cunho imperialista.


Interessantemente, a terminologia de Estado falido não é utilizada pelas lideranças do Ocidente para se referir às atuais convulsões sociais históricas que vêm transformando o Chile, tido durante muitos anos como o modelo neoliberal a ser seguido por toda América Latina. No caso dos rankings da FSI, mesmo que o Chile tenha sido o país com maior queda em 2020, ele ainda se encontra como um dos países mais estáveis do mundo, na 36º posição. Pouco à frente , na 29º posição, se encontram os Estados Unidos, que estão tendo nos últimos meses os maiores protestos de sua história, um caos sanitário que ceifou a vida de centenas de milhares de cidadãos e uma população cada vez mais polarizada. Neste ano, os EUA até mesmo foram denunciados pela Anistia Internacional devido à violência policial nas manifestações antirracistas do movimento Black Lives Matter.

Seria também o caso de avaliar os autoproclamados bastiões da democracia como um Estado falido?

Parece começar a ser o caso para importantes mídias yankees, como o The Atlantic, o The Intercept e, mais recentemente, a Vice, extremamente críticas ao manejo da pandemia em solo estadunidense pela burocracia executiva e legislativa do país. Seguindo a mesma linha, a China Global Television Network (CGTN), mídia estatal chinesa, apontou há poucos dias que a ineficiência administrativa, polarização política e a guerra partidária do sistema americano tornou a “democracia mais desenvolvida do mundo” em um Estado falido. O feitiço teria virado contra o feiticeiro?

Provavelmente não. Os recentes artigos que apontam a falência dos EUA evidentemente não serão utilizados como argumento para justificar ou incentivar a interferência externa no território americano, diferentemente do que continua a acontecer na Ásia Ocidental ou na América Latina. Mesmo assim, as críticas contribuem para o questionamento da real aplicabilidade do termo Estado falido e evidenciam como a luta política também se trava no campo dos vocábulos e conceitos. Ou ainda, como escutei recentemente em uma música: "mesmo as palavras pequenas nunca serão apenas palavras".

 

Para saber mais: - Livro Failed States, de Noam Chomsky, publicado originalmente pela Penguin Books;

- Matéria Think Again: Failed States, de James Traub para a revista Foreign Policy; - Texto Você sabe o que é um Estado falido?, de Thiago Rosa na plataforma Medium.

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