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  • Foto do escritorTomás Paixão

Os enclaves territoriais e o caso do Lesoto

Atualizado: 11 de ago. de 2023

Os mapas sempre me fascinaram. A quantidade de países diferentes, ilhas perdidas no meio do oceano, regiões afastadas e fronteiras traçadas com linhas retas sempre me encheram de curiosidade para buscar mais sobre espaços que pouco havia ouvido falar quando era mais novo. Nessas investigações, minha bússola sempre acabou apontando para o Sul Global e, em especial, para o continente africano.

Charge representando a Conferência de Berlim, que repartiu o continente africano entre as potências europeias

Na África, as fronteiras trazem até hoje diversas problemáticas aos Estados. A grande maioria delas foram impostas durante o processo de colonização europeia, que impôs de forma completamente arbitrária divisões territoriais sem considerar as realidades étnicas, sócio-políticas e ecológicas de cada um de seus povos. Não à toa, as fronteiras são até hoje consideradas em grande parte do debate acadêmico como uma das razões mais importantes para a instabilidade política do continente.


Na África Austral, um dos casos mais curiosos da delimitação das fronteiras de um Estado pode ser encontrado no Lesoto. Com seu território completamente envolto pela África do Sul, o Reino do Lesoto é o que podemos chamar de enclave territorial.


Os enclaves territoriais

De forma geral, os enclaves territoriais são definidos como territórios que estão completamente envoltos por um outro Estado. Por sua própria característica, os enclaves muitas vezes causam grandes problemas no cenário internacional e para as populações que vivem nessas regiões, à medida que passam a ser diretamente dependentes da política externa de um outro Estado.


No Sul Global, muitos casos de enclaves territoriais já foram bem documentados. Um dos mais repetidos na literatura da área é o caso daqueles localizados nos territórios de Bangladesh e da Índia, bastante úteis para entender o resultado prático que os enclaves territoriais podem ter na vida dos indivíduos que ali moram e o significado de outras terminologias correlatas.


Até assinatura de um acordo entre os dois países, há cinco anos, que solucionou a questão, Bangladesh e Índia possuíam centenas de territórios que estavam completamente envoltos pelo país vizinho, totalizando 51 enclaves de Bangladesh no território indiano e 111 enclaves indianos no território bengali. Resultado da guerra de secessão do Paquistão Oriental — que originou Bangladesh —, a situação acabava por gerar grandes complicações na vida de mais de 50 mil pessoas que viviam nesses locais, muitas vezes sendo consideradas apátridas e, ao mesmo tempo, dependendo da política internacional do país vizinho cuja cidade em que vivia estava localizada.


Mapa de Dahala Khagrabari

Destacado no mapa ao lado, o caso de Dahala Khagrabari foi um dos mais excepcionais dentre os enclaves pelo mundo. Até o acordo de 2015, o território de sete mil metros quadrados se localizava dentro de um território de Bangladesh, que por sua vez também era circundado por um território indiano. Para complicar ainda mais, esse território era um pedaço indiano dentro de Bangladesh, sendo assim também um enclave por si só.

O que importa do caso excepcional do Subcontinente Indiano, é que sempre que possuímos um enclave dentro de outro enclave estamos falando de um contra-enclave. Assim, Dahala Khagrabari pode ser avaliado como um contra-contra-enclave, ou seja, um enclave dentro de um enclave circundado por outro enclave. Se já é complicado que um país tenha diversos territórios dentro de outro, imagine o que significa para um Estado ser completamente envolto por outro país! Esse raro caso pode ser encontrado em apenas três Estados soberanos reconhecidos pela comunidade internacional: o Vaticano, a República de San Marino e o Reino do Lesoto.

Por que o Lesoto é um enclave territorial?


Para entender a situação fronteiriça do Lesoto, é necessário anteriormente conhecer um pouco sobre sua história. Na região do Basotho, onde se localiza o atual Lesoto, três grupos principais estavam estabelecidos no começo do século XIX: os khoisan, os bantus e os sotho-tswana, cada um subdividido em diversos clãs e espalhados por diferentes territórios. Deste último grupo, surgiria a figura de Moshoeshoe I, que seria conhecido por ser o fundador e pai da futura nação.


Moshoeshoe I, considerado fundador da nação e primeiro rei do Lesoto

Moshoeshoe I se tornaria líder do clã Bamokoteli, por volta de 1815, conseguindo aos poucos subordinar diversos outros clãs da região. A grande virada de sua trajetória ocorreria após expansão do Império Zulu, liderado por Shaka e um dos mais poderosos reinos da África Austral, que rapidamente faria com que a população dos basothos tivesse de se refugiar nas cadeias de montanhas da região para fugir dos ataques constantes. A geografia do local e a liderança de Moshoeshoe foram essenciais para a defesa dos povos que ali se refugiaram, fomentando uma região cada vez mais fortalecida e com população em expansão. Dessa forma, unindo a maioria das sociedades da região que tiveram de fugir dos ataques zulus, surgiria a chamada Basutolândia.


A formação da nação dos basothos não impediu, porém, o perigo de invasão de outros povos anos mais tarde. As disputas territoriais entre os basothos e os boêres foram constantes por toda a metade do século XIX e se intensificaram após a formação da República do Estado Livre de Orange. Em 1868, após diversas derrotas contra os boêres e em negociação com o Império Britânico — que durante o reinado de Moshoeshoe reconhecia a soberania do reino e também vivia em conflito com os boêres —, a Basutolândia se tornaria um protetorado britânico.


Nos anos posteriores, a maior mudança ocorreu em 1959, quando a Basutolândia tornaria-se uma colônia. Em 1966, porém, já declararia sua independência do Reino Unido. Nos anos subsequentes, devido à politica do apartheid na África do Sul, se tornava muito mais vantajoso ao país manter sua independência política, em detrimento de uma incorporação ao país vizinho. O Lesoto, inclusive, seria importantíssimo para milhares de sul-africanos perseguidos pelo regime racista, recebendo asilo político no enclave territorial.


Mapa do atual Lesoto, um enclave territorial na África do Sul

Nos dias atuais, o Lesoto é ainda extremamente dependente do país vizinho. Grande parte da mão-de-obra do pequeno país acaba por trabalhar nas cidades sul-africanas do entorno e a fuga de cérebros é constante pela grande dificuldade socio-econômica que ainda passa a região. Assim, existem há anos nos dois países diversas discussões sobre a anexação do território do Lesoto pela África do Sul.

 

Para saber mais:


- Série de reportagens sobre o Lesoto na TV Brasil, disponível no YouTube;


- Artigo Lesotho: Will the Enclave Empty?, de James H. Cobbe;



- Informações gerais no site do governo do Lesoto;


- Informações gerais no portal South Africa History Online.

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