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  • Foto do escritorFelipe Vidal

O Sul Global encarnado em Diego Maradona

Atualizado: 11 de ago. de 2023

Foi comemorado no último dia 30 de outubro os 60 anos de Diego Armando Maradona Franco. Se trata de uma figura indiscutivelmente polêmica e, em geral, pouco bem quista no Brasil — seja pela histórica rivalidade entre Brasil e Argentina ou pela infame disputa com Pelé pelo título de melhor jogador de futebol de todos os tempos. Seria no mínimo leviano fazer maiores apresentações aos mais versados nas anedotas do esporte bretão, entretanto, trago a temática por acreditar que Maradona é a personificação do Sul Global e há muito o que falar dele para além do campo e bola. Podemos não estar celebrando o melhor jogador de todos os tempos, afinal também sou brasileiro, mas certamente estamos falando do aniversário do maior personagem da história do futebol mundial.


A indissociabilidade do ser humano e do jogador


Hoje é motivo de surpresa e de proliferação dos malfadados memes quando algum atleta emite uma opinião legitimamente pessoal ou um desabafo pouco ponderado. A corrida pelos melhores patrocínios, a valorização da personalidade neutra e especialmente a censura por parte do crescente movimento neofascista são alguns dos fatores que levam atletas a contratar o serviço de media training e/ou até se furtar completamente de debates socialmente relevantes. Vide o caso recente da jogadora de vôlei de praia Carol Solberg, que recebeu advertência do órgão responsável por sua modalidade ao emitir um sonoro "Fora Bolsonaro!" ao celebrar uma vitória.


Maradona em mais uma de suas polêmicas fotos fumando um charuto e exibindo sua tatuagem de Che Guevara

Nunca houve censura que parasse Maradona, tanto para o bem quanto para o mal. O atleta argentino era em campo o exato reflexo de sua personalidade fora dele. Seus posicionamentos políticos estavam lá a todo momento, bem como suas paixões, contradições, vícios e tudo mais que pudesse compor essa figura ímpar. Se manifestações através das clássicas comemorações com mensagens passaram a ser proibidas recentemente, Maradona possui tatuados em sua pele os rostos de Che Guevara e Fidel Castro, no ombro e na perna respectivamente. Estar de acordo com o craque não é uma exigência para que se reconheça sua recusa à alienação. Ao ser questionado pela imprensa, em 2013, sobre o que tinha a opinar sobre a morte na prisão do ex-ditador argentino Jorge Rafael Videla, El Pibe foi enfático: "Que não descanse em paz!".


Maradona em seu último ano de carreira, no Boca Juniors, já com atuações pouco inspiradas

Refletindo também um lado triste de nossa sociedade, foram sucessivas as vezes em que teve sua luta contra o vício em cocaína exposta publicamente — problema esse que está longe de ser exclusividade do ídolo argentino e quase o matou por pelo menos duas vezes. Seus auges de loucura impactavam diretamente seu rendimento como atleta, foi pego em casos de doping, chegou a ser preso e até mesmo o fim de sua carreira teve ares de melancolia devido a sua decadência física. Nada disso o impediu de ser altivo e se posicionar sempre que achava necessário.


Seu ídolo e segundo pai


Dia em que Fidel Castro e Maradona se conheceram pessoalmente, em 1986

Apesar de ser dono de um carisma fora da curva, Maradona começou a deixar o posto de figura indiscutível para os fãs de futebol logo cedo. Fora sua identificação especial com o Boca Juniors — do qual se declara torcedor — e outros clubes por onde jogou, que automaticamente gerou antipatia dos rivais clubísticos mais diretos, o argentino nutriu uma íntima relação com uma figura um tanto controversa: Fidel Castro.


Craque argentino mostrando o rosto de Fidel tatuado em sua perna

A simpatia de Maradona por ideais mais à esquerda do espectro político latino-americano — bem como sua aversão ao liberalismo e aos regimes militares — vem de longa data. Conhecer pessoalmente o líder cubano, em 1986, desencadeou um fascínio imediato pela ilha, algo que acabou sendo sucedido por repetidas visitas ao local. Fã de charutos cubanos e vivendo seu ápice esportivo, o argentino parecia ter encontrado um amigo tão perfeito quanto inusitado.


Maradona em seu período mais crítico: obeso, com vício descontrolado, sofrendo de múltiplos problemas de saúde e internado em clínica cubana

No entanto, tal relação se aprofundou de fato em 2000, quando o ex-camisa 10 já havia se aposentado e enfrentava uma duríssima crise em sua saúde tão maltratada ao longo da carreira. Foi Fidel quem acolheu Maradona e colocou o sistema de saúde cubano — que é reconhecido mundialmente pela excelência — à disposição para sua recuperação. Familiares e amigos próximos relatam que os dias passados em clínica cubana foram fundamentais para que Maradona recuperasse suas forças de viver.


A morte de Fidel Castro, em 2016, acertou em cheio o gênio argentino, que conta ter chorado muito com a perda daquele que chama de segundo pai. É curiosa ainda a lembrança que trouxe à tona sobre as ligações que recebia de Fidel pela noite para conversarem acerca do cenário político.


Guerra das Malvinas


Dentro do complexo contexto da Guerra das Malvinas, Maradona também ocupou lugar de heroísmo que superou em muito até mesmo figuras diretamente envolvidas no conflito. Desenrolado em 1982, mesmo ano da Copa do Mundo FIFA, o conflito buscava reacender um orgulho patriótico que anos antes havia sustentado o golpe de Estado no país. Dessa vez o governo militar não possuía muitos artifícios administrativos mais para tentar justificar seus abusos contra a população, sendo essencial buscar subterfúgios em outras esferas para tirar o foco de seus crimes.


O uso político do esporte não foi exclusividade da Copa do Mundo daquele ano e merece um debate por si só, mas a proximidade com a investida bélica deu um toque especial à organização da competição pelos argentinos. Sobre o interesse dos ditadores na seleção nacional, Maradona disse em sua autobiografia:


"Não sei se os tropas que estavam no governo naquela altura nos utilizavam, não sei. Certamente, sim, porque faziam o mesmo com todos. Mas uma coisa não desmerece a outra. Não se pode sujar o nosso triunfo por causa dos militares, nem devem ficar com dúvidas do que penso deles. Caras como o Videla, que fizeram desaparecer 30.000 pessoas não merecem nada. Caras como o Videla fazem com que o nome da Argentina esteja sujo lá fora."

Capa de revista faz trocadilho com canção clássica argentina, após vitória sobre Inglaterra

Quis o destino que na competição de quatro anos mais tarde, no México, as quartas de final colocassem frente a frente Argentina e Inglaterra. As rusgas do pós-guerra ainda estavam vivíssimas — como em parte seguem até hoje — e o confronto era visto como a oportunidade perfeita de se impor em relação ao outro, especialmente para o lado argentino. O acontecimento já seria suficientemente curioso, mas Maradona estava em campo, então um jogo morno não era uma opção. A partida trouxe para a história do esporte dois dos mais lembrados gols da história, ambos com títulos próprios e marcados por Maradona: o Gol do Século e a Mão de Deus. No primeiro, o camisa 10 deixa ingleses no chão ao longo de todo o campo, como se acometidos por algum ataque físico, até que coloca a bola para o fundo das redes e explode com sua torcida. Já no segundo, o craque tem ainda mais requinte de crueldade, pois rouba aqueles que acredita terem roubado seu país muito antes. El Pibe completa para o gol utilizando a mão, mas nada parecia mais justo se, aos seus olhos, os europeus haviam igualmente roubado as Malvinas e as vidas argentinas que lutaram na desastrosa guerra. Por fim, o clima de revanche era gritante e nada substituiria a satisfação da vingança momentânea em deixar cada pub britânico menos festivo.



Até mesmo o sincretismo religioso tão típico do Sul Global é de certa forma refletido na figura de Diego Maradona, através da Igreja Maradoniana

Muitos anos após seus auge esportivo, Maradona ainda ostenta uma legião de fãs pelo mundo, saúde bastante frágil, opiniões fortes — nem sempre condizentes com o senso comum — e até mesmo uma peculiar Igreja Maradoniana, criada para cultuar o gênio do futebol. Que Maradona tenha ainda muitos anos de vida e que personalidades tão encantadoramente ricas como a dele ainda possam surgir em um universo esportivo cada vez mais uniformizado e elitizado.

 

Para saber mais:


- Livro Yo Soy el Diego de la Gente, autobiografia de Diego Maradona, publicada originalmente em espanhol pela editora Planeta;


- Vídeo Maradona completa 60 anos: craque espetacular, ídolo, gênio, maior personagem da história do futebol, do jornalista Mauro Cezar Pereira no seu canal no YouTube;


- Texto De Golpes e Gambetas: Videla, Maradona e o Futebol na Ditadura Argentina, de Maurício Brum na página Puntero Izquierdo;

- Matéria O Vingador das Malvinas, na coluna Toco y Me Voy do Portal da Cidade de Brusque;


- Matéria A morte de Videla também é o fim de uma era de mentiras, de Felipe Portes para o portal Trivela.

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