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  • Foto do escritorFelipe Vidal

O Rei Macaco e suas releituras na cultura pop

Atualizado: 10 de ago. de 2023

Um dos contos populares mais repercutidos na cultura oriental é a lenda chinesa do Rei Macaco, personagem do romance épico Jornada ao Oeste. Publicada originalmente no século XVI, durante a dinastia Ming, a obra é uma versão alongada, com elementos fantásticos, dos relatos históricos de Xuanzang, um monge budista que viveu por volta do século VII. O religioso exercia sua fé em um templo na cidade de Xiam, à época capital chinesa, mas se encontrava insatisfeito com a baixa qualidade das traduções locais do material que consumia em sua prática budista. Decidido a buscar melhores versões dessas escrituras, Xuanzang transgrediu a proibição de viagens imposta pelo imperador chinês e atravessou vários territórios asiáticos até chegar à Índia.


Depois de mais de uma década conhecendo os mais icônicos pontos de peregrinação budista ao redor do subcontinente indiano, o monge retorna à China e é surpreendentemente bem recebido pelo imperador, passando a liderar o projeto de preservação daquilo que trouxe do exterior. Apesar da existência de inúmeros relatos escritos dessa jornada, seu distanciamento temporal colaborou para que muitas dúvidas pairassem sobre a veracidade dos fatos, assim como não tardou para que uma série de versões alternativas fossem repassadas pela tradição da oralidade.

O Rei Macaco e o protagonismo roubado


A epopeia de Xuanzang seria a base fundamental para que, no século XVI, o escritor Wu Cheng'en produzisse o que hoje é considerado um dos quatro grandes romances clássicos da literatura chinesa. Além da alteração de nomes, ambientação geográfica e uso de outras ferramentas de adaptação narrativa, Cheng'en adiciona três personagens que viriam a acompanhar o folclore chinês de maneira muito marcada desde então: Sun Wukong, Zhu Bajie e Sha Wujing. Cada um desses personagens renderia por si só um debate extenso acerca de suas múltiplas interpretações e influências culturais, mas aquele que, sem dúvidas, mais gerou produtos derivados de sua caracterização foi Sun Wukong, o Rei Macaco.


São inúmeras as referências ao Rei Macaco em produções culturais que procuram prestar algum tipo de homenagem ao seu mito de origem. Dada a impossibilidade de abranger todas essas obras, é interessante ao menos ilustrar o potencial de adaptação da riqueza desse personagem pelas mais diversas mídias e autores, com enfoque ao que chegou de maneira mais acessível por aqui.

Originalidade literária


Com cem capítulos comumente divididos em quatro partes, o romance original da Jornada ao Oeste traz em sua estrutura narrativa um argumento bastante razoável para a relevância de Sun Wukong, além de sua riqueza como personagem. O Rei Macaco tem os primeiros sete capítulos da obra — ou a primeira parte — dedicados a si, contando desde sua origem mítica, do ventre de uma pedra germinada pelos cinco elementos, até sua consolidação como figura lendária, polimórfica, guerreira e imortal. Esse prólogo fecha todo um arco que conta com Wukong como protagonista e não se encerra com o personagem na melhor das situações, visto que precisou ser aprisionado por Buda ao desafiar a burocracia celestial. Tal primeira parte é encarada por muitos como a lenda do Rei Macaco em sua íntegra, ou seja, uma história autocontida e que tem seu protagonista retornando mais à frente, quando da aparição conjunta com outros personagens.


Ainda que largamente conhecido ao redor do mundo, especialmente em meio aos interessados pela cultura asiática, o romance original costuma encontrar dificuldades em ser publicado na íntegra por mercados editoriais ocidentais. A difícil interpretação dos debates filosóficos levantados através de semiótica oriental, por parte do público geral, se soma à extensão pouco convidativa para editoras de pequeno porte. No Brasil, a situação não foi diferente e todas as tentativas de publicação foram canceladas antes de sua conclusão.

Produções cinematográficas que invadem o Ocidente


Não seria exagero dizer que existem centenas de filmes e séries que retratam o Rei Macaco em suas mais diversas interpretações. No entanto, boa parte desse grande volume de produções tem repercussão limitada ao continente asiático, algumas delas inclusive de baixo orçamento e pensadas para determinado público local. Hong Kong, Taiwan e a própria China continental são os principais celeiros dessas obras um tanto desconhecidas no Ocidente. Não se pode ignorar, contudo, que é bastante recente e incipiente a nossa abertura a produtos culturais advindos de fora dos grandes centros ocidentais, então o atropelamento de alguma potencial obra-prima ao longo desses levantamentos é sempre uma possibilidade.


Aparição do Rei Macaco na obra cinematográfica de 2008

Dito isso, um filme que ganhou bastante holofote no circuito mainstream de cinema foi O Reino Proibido (2008), produção sino-americana protagonizada pelos asiáticos Jackie Chan e Jet Li. Ainda que a qualidade do filme não seja um consenso, a presença dos astros chamou atenção do público geral e o filme acabou sendo eficiente ao conseguir lucrar no Ocidente trabalhando basicamente com os elementos fantásticos presentes na Jornada ao Oeste, ainda que não seja uma adaptação direta da obra.


Outra obra cinematográfica que vale a pena ser lembrada é A Lenda do Rei Macaco (2014), que estreou na China quebrando recordes de bilheteria e também contou com astros orientais, como Donnie Yen, apesar de se tratar de uma produção local. Mesmo com algumas críticas negativas da mídia especializada, seu sucesso financeiro rendeu ainda uma sequência, intitulada A Lenda do Rei Macaco 2 - Viagem ao Oeste (2016). Ambas podem ser encontradas com facilidade em plataformas de streaming.


O Japão e uma derivação que chegou perto de superar a original


A presença de elementos da mitologia chinesa em produções japonesas ou coreanas é um fator tão recorrente quanto controverso no histórico de interação entre as nações vizinhas. As assimilações culturais são tão intensas, devido às complexas ocupações territoriais, que já levaram até mesmo a mesclas linguísticas.


Sun Wukong e Son Goku lado a lado, ambos sob o traço de Akira Toriyama

Difundida mundialmente através de sua icônica adaptação em animação, a obra Dragon Ball, de Akira Toriyama, tem seu primeiro arco bastante fora do eixo temático costumeiramente abordado pelo Ocidente. No entanto, aquilo que parecia fruto de alucinação era a representação da lenda do Rei Macaco sob a ótica do autor japonês. O protagonista Goku replica em suas características elementos advindos diretamente da história original, como seu rabo aparente — mesmo na forma humana —, seu bastão mágico e sua nuvem voadora. É digno de nota que o nome do personagem de Dragon Ball, Son Goku, seja a exata transliteração de Sun Wukong para a língua japonesa.


A obra acabou se alongando em inúmeras temporadas e se distanciando consideravelmente da premissa original, mas é bastante razoável acreditar que Goku talvez seja hoje até mesmo mais famoso mundialmente que o personagem que o inspirou.


Quadrinhos nas suas mais diversas possibilidades


A mídia dos quadrinhos é aquela que, sem sombra de dúvidas, mais bem explorou o mito chinês em suas diferentes facetas. Ao pé da letra, até mesmo o exemplo supracitado de Dragon Ball é um caso proveniente da prolífica indústria dos mangás japoneses, ainda que tenha se popularizado pelo mundo em sua versão animada. Acredita-se que o grande apelo dos quadrinhos pela lenda chinesa esteja exatamente no fato da possibilidade de atenuar a complexidade interpretativa, inerente a um romance do século XVI, através de representações visuais que auxiliam e enriquecem a narrativa.


Capa da versão brasileira da adaptação com tons de erotismo de Milo Manara à lenda de origem chinesa

Um exemplo inusitado das múltiplas possibilidades dos quadrinhos está em O Rei Macaco, ilustrado por Milo Manara e roteirizado por Silverio Pisu. Considerado um mestre do erotismo em quadrinhos, Manara é um dos símbolos desse segmento do mercado italiano. Tratando-se de uma releitura bastante livre do romance original, a obra toca em temas bastante pertinentes ao cenário político dos anos 70, se utilizando para tal de mesclas de referências.


Já em O Chinês Americano, quadrinho premiado internacionalmente, Gene Luen Yang narra três histórias paralelas a fim de debater a questão da migração chinesa para os EUA. Aquela que está aparentemente solta e acaba se mostrando como o ponto de interseção entre todas as narrativas é uma releitura da tradicional história do Rei Macaco, o inserindo no inusitado contexto de um mundo humano e contemporâneo.


Por fim, o mais recente aceno da indústria dos quadrinhos à antiga lenda chinesa vem da gigante estadunidense DC Comics, que tem cada vez mais investido pela inserção no mercado oriental, se utilizando assim também de maior diversidade em suas obras. Ao anunciar The Asian Superhero Celebration, em comemoração ao Mês dos Americanos com Herança Asiática, a editora apresentou um novo personagem, chamado Monkey Prince, em referência direta ao épico.

 

Para saber mais:



- Matéria História sem fim, de Janaina Rossi Moreira para a página do Instituto Confúcio na UNESP;


- Quadrinho Rei Macaco, de Milo Manara e Silverio Pisu, publicado pela editora Pipoca & Nanquim;


- Quadrinho O Chinês Americano, de Gene Luen Yang, publicado pela Quadrinhos na Cia.;


- Reportagem Mais filmes chineses contam histórias do "Rei Macaco" depois do sucesso anterior, na versão em português do People’s Daily;


- Matéria A Lenda de Sun Wukong, no portal Mitografias.

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