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  • Foto do escritorTomás Paixão

O movimento da Negritude e a formação das identidades nacionais nas colônias lusófonas

Atualizado: 10 de ago. de 2023

Ao nascermos, adentramos o mundo com um brado, que nada tem de heroico. Nele, não há pertencimento ou liberdade, há simplesmente a constatação: eu respiro, eu vivo, eu existo, eu estou aqui. Passado ao silêncio, limpado o sangue materno, nos encontramos órfãos dessa certeza de ser. Isso porque simplesmente ser já não basta. Entramos em contato com diversos discursos e clamar o nosso lugar no mundo torna-se tarefa difícil. Que partes de mim são constituídas por um país, uma raça, uma classe, uma cultura, uma língua e que partes são constituídas por uma visão de um país, uma raça, uma classe, uma cultura, uma língua? A busca por identidade está sempre presente em nossas vidas. Em países africanos de língua portuguesa que passaram pelo processo colonial, que trazem em sua história violência, censura e apagamento, a busca por uma identidade está associada à desconstrução de uma identidade, criada pelo colonizador – de inferioridade, de selvagem, de animal, de cor. De acordo com Stuart Hall “(...) as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação”. Uma das formas de representação seria aquela feita pelas literaturas nacionais, que, ao representarem imagens e discursos com os quais nos identificamos, ajudam a construir nossa identidade nacional. Foi assim, por exemplo, que aconteceu nos movimentos literários Romantismo e Modernismo, em que várias obras despertaram a consciência nacional brasileira. A literatura também se tornou um meio de construção de identidades nacionais em países como Angola e Moçambique, cujo contexto colonial e opressivo foram similares ao vivido no Brasil.

A cultura desses países, antes da época colonial, era baseada na oralidade, afirmada através da música, dos gestos, de cores, danças ou narrativas tradicionais orais. A letra, portanto, em primeiro momento, não era algo natural desses espaços, mas uma imposição, representando as imagens presentes no discurso do colonizador. Como, então, pode-se afirmar a identidade de países africanos com algo que é, primeiramente, uma arma de opressão? A partir do momento em que os escritores africanos percebem o poder da letra e apropriam-se dela para falar sobre os processos que vivem na colônia, sobre a sua cultura, seus sofrimentos e sua luta contra o colonizador, a literatura passa a ser um instrumento de afirmação da identidade nacional e um meio de luta contra a opressão.

Quartier Latin em fotografia da década de 1920.

O movimento da Negritude foi fundamental para esse processo. Sua origem é geralmente associada ao Quartier Latin, região de Paris conhecida por sua efervescência política e na qual, já nos anos 30, circulavam as teorias de psicanálise de Freud e as históricas obras de W.E.B. Du Bois sobre a situação do negro nos Estados Unidos. Neste momento, escritores e artistas que integravam o movimento têm como mote a tomada de autoconsciência da condição do negro na sociedade francesa e a descoberta de uma literatura que refletisse essa realidade. No contexto francês, a Negritude evidencia as agendas e problemas enfrentados pelos negros na França – em geral descendentes de migrantes das colônias francesas na África ou no Caribe. Assim, o movimento se torna um produto dos fatores políticos, sociológicos e culturais da França dos anos 1930, tendo como princípios o questionamento de uma suposta "missão civilizadora" do Ocidente perante os países considerados “selvagens” e a busca da reconciliação dos negros com eles mesmos.

Aimé Césaire na sua juventude.

O termo "negritude" tem sua origem no número 3 da revista L'étudiant noir (O estudante negro), periódico mensal criado por Aimé Cesaire em 1935. Na revista, o autor martinicano formaria um espaço de profundo debate intelectual e teórico que visava a valorização da cultura negro-africana frente ao eurocentrismo da sociedade francesa. A negritude, nestes primeiros anos, seria “um novo nome, um conceito (...) para onde se canalizam os debates: a negritude, quer dizer, a personalidade negra, a consciência negra".


Essa perspectiva encontra especial repercussão na obra Cahier d’un discours au pays natal (Caderno de um retorno ao país natal), de Aimé Césaire. A negritude seria retomada mais adiante pelo senegalês Léopold Sédar Senghor, buscando valorizar as contribuições do ponto de vista cultural e emocional que a cultura negro-africana poderia fornecer às perspectivas racionalistas e materialistas que compunham a cultura no Ocidente.


A negritude sofreria, ainda, múltiplas transformações para adaptar-se às necessidades e complexidades das comunidades negras do mundo. Nas colônias lusófonas, o movimento inspiraria uma legião de escritores a valorizar a cultura negro-africana e refletir o lugar do negro nas sociedades colonizadas. Esse seria o primeiro passo para a formação de um sentimento nacional que, inevitavelmente, desembocaria nos movimentos independentistas de países como Angola e Moçambique.

O papel fundamental da Negritude na construção das identidades das colônias lusófonas


A Negritude desempenhou um papel fundamental na construção das identidades, já que se propôs exatamente, de acordo com Césaire, em seu “Discurso sobre a Negritude”, o reenraizamento e desabrochar da cultura negra, promovendo a revolta e “conquista de uma nova e mais ampla fraternidade”. Além disso, como diz Laranjeira, em De Letra em Riste, “se a grande massa do leitor português, nessa época, não reconhecia um texto como seu [...], é porque ele já pertencia inequivocamente ao patrimônio do porvir nacional”. Visto isso, os textos literários que começaram a afirmar as identidades africanas traziam uma expressão local na estrutura da língua portuguesa, ou seja, o português era interferido pela maneira como as línguas locais se organizavam, poemas eram percussivos – lembrando o ritmo de guerra quando libertários ou de melodias típicas como o batuque.

Em 1975, Angola conquistaria sua independência após mais de 10 anos de luta. Seguiria, porém, uma guerra civil que assolaria o país até 2002.

No livro “Sagrada Esperança”, do escritor angolano Agostinho Neto, por exemplo, é possível observar logo no primeiro poema, “Adeus à hora da largada”, um sentimento de coletividade, como se o sujeito poético não fosse somente um “eu”, mas “nós”, ligados tanto por sangue quanto por alma e história, todos possuindo a mesma Mãe: “Sou eu minha Mãe/ a esperança somos nós/ os teus filhos/ partidos para uma fé que alimenta a vida”.

Em “Quitandeira”, ainda em “Sagrada Esperança”, vê-se a representação de uma situação que ocorre no cotidiano, narrada inicialmente com características da oralidade, como se fosse uma das histórias contadas em grande roda: “A quitanda./ Muito sol/ e a quitandeira à sombra da mulemba”. Logo a voz do narrador é trocada pela a do sujeito poético da quitandeira, que vende suas laranjas e tenta também se vender, para sair da condição de sofrimento que se encontra: “Compra laranjas doces/ compra-me também o amargo/ desta tortura/ da vida sem vida”. Aqui temos outra maneira de afirmar a identidade angolana por meio da língua portuguesa: utilizando uma organização diferente daquela presente no português de Portugal, para mostrar os sofrimentos de um angolano e a sua realidade.

No poema “Nós gritamos no deserto”, do angolano Jonas Malheiro Savimbi, em “Quando a Terra voltar a sorrir um dia”, há clara denúncia e luta contra o colonizador, é um poema político e seu ritmo percursivo reflete um sentimento de guerra, de morte. Da mesma forma, vemos esse processo na sintaxe presente no poema, na organização e palavras, que diferem daquelas do português do colonizador: “Morte, coragem e honra/ Kapalandanda ficou e demais/ Esperança, fé trabalho por honra/ Kapalandanda único e jamais/ Esperança levou Kapalandanda/ Terra, ideologia e Revolução/ Pátria, Liberdade e Unidade/ Mortos ou vivos gritais pela grei”.

Em Moçambique, escritores como Noémia de Sousa também se utilizaram da literatura como forma de afirmar a identidade nacional de seu povo. Em “Deixa passar o meu povo”, presente no livro “50 poetas africanos”, Noémia traz mais uma vez a narração de uma situação do cotidiano e a oralidade para a escrita, colocando, mesmo, palavras estrangeiras e trechos de música: “Mas vozes da América remexem-se a alma e os nervos./ E Robeson e Marian cantam para mim/ spirituals negros de Harlem./ «Let my people go»/ – oh deixa passar o meu povo (...)”. O sujeito poético não escreve sozinho, mas com todos aqueles que partilham de algo muito maior, algo que conecta, não importa em que lugar ou estado se encontrem – negritude e ancestralidade estando presentes no poema: “Dentro de mim, soam-me Anderson e Paul/ e não são doces vozes de embalo (...) Escrevo.../ Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar (...) E Paulo, que não conheço/ mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de/ Moçambique (...)”. Não deixa de ser, também, um poema político, em que a poetisa faz um apelo, que cresce a cada verso, no final sendo colocado em letras maiúsculas com um ponto de exclamação: “OH DEIXA PASSAR O MEU POVO!”.

Em “Grito Negro”, presente em mesmo livro, o poeta moçambicano José Craveirinha destaca a pele negra e, apodera-se de uma fala racista do colonizador e a subverte, a assume, relacionando-a com tudo aquilo que o torna quem ele é, que o faz negro e parte de um coletivo que partilha de uma mesma experiência e história, que transforma a coisa carvão em humano, com ar nos pulmões para gritar ao mundo quem é: “Eu sou carvão!/ E tenho que arder, sim/ E queimar tudo com a força da minha combustão. (...) Sim!/ Eu serei carvão/ Patrão!”.

Com esses exemplos, é possível ver como o contexto sócio-histórico e pensamentos libertários influenciaram escritores, como os de Angola e Moçambique, a escrever uma literatura que pudesse representar um povo. Foi através dessa literatura que efetivaram os processos de construção das identidades nacionais quanto à afirmação da tradição oral e dos pertencimentos raciais no período anticolonial e de independência.


Artigo escrito em colaboração com:

Natália Rodrigues

Mestra em Teoria Literária e Literatura Brasileira - UFF

 

Para saber mais:

- Livro Discurso sobre o Colonialismo, de Aimé Césaire, publicado pela Editora Veneta;


- Livro Diário de Um Retorno ao País Natal, de Aimé Césaire, publicado pela EDUSP;


- Livro Sagrada Esperança, de Agostinho Neto, publicado pela Editora Ática;


- Livro As Almas do Povo Negro, de W.E.B. Du Bois, publicado pela Editora Veneta;

- Livro A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall, publicado pela Editora Lamparina;


- Livro Léopold Sédar Senghor: De la négritude à la francophonie, de Mylène Théliol, publicado pela 50minutes.fr.

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