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  • Foto do escritorFelipe Vidal

Mais um golpe militar em Myanmar e a fragilidade histórica da democracia local

Atualizado: 10 de ago. de 2023

Muito se tem ouvido falar por aqui nos últimos dias sobre Myanmar, uma nação do Sudeste Asiático que figura há décadas entre os países mais pobres do mundo, mas que possui uma história riquíssima e frequentemente ocultada pelos sucessivos rompantes anti-democráticos que tomam os noticiários estrangeiros sobre a região.


Passado colonialista e golpe militar


Repetindo uma realidade infelizmente comum na região, Myanmar obteve sua independência apenas em 1948, após um longo período de domínio britânico. Os europeus também foram responsáveis por demarcar o atual território do país, à época chamado de Birmânia, que resulta de um desmembramento do subcontinente indiano. O que seguiu o processo independentista foi menos aprazível do que o esperado por um povo que ansiava sua liberdade, pois a realidade birmanesa entre 1948 e 1962 foi de intensas disputas étnicas, rompantes separatistas e convulsão social.


General Ne Win, fundador do Partido do Programa Socialista da Birmânia

O ano de 1962 marcou a chegada dos militares ao poder, através de um golpe de Estado liderado pela emblemática figura do general Ne Win. A constituição até então vigente foi abolida, levando consigo a autonomia dos estados estabelecidos para os grupos étnicos mais significativos, os quais viviam em constante conflito.


Socialismo à birmanesa


Fundado juntamente com o golpe, o Partido do Programa Socialista da Birmânia (PPSB) apresentou uma proposta bastante sui generis em relação a outras experiências socialistas pelo mundo. Apesar de similaridades com outras ditaduras de esquerda, como implementação de um sistema de partido único, o partido fundado pelos militares birmaneses pregava o que chamavam de Estado socialista não-marxista-leninista, o que à época significava dizer que se distanciava largamente dos EUA, mas também não se alinhava à URSS.


A exemplo da experiência chinesa, em termos de prática, não foram raros os expurgos intra-partidários sob acusações de ideologização comunista, marxista e/ou leninista. O PPSB perdurou como partido único no país de 1962 até 1988, período no qual boa parte da economia foi estatizada e socializada aos moldes da proposta militar. Os cargos de primeiro-ministro e presidente foram acumulados por Ne Win entre 1962 e 1981, que promoveu um intenso isolamento da Birmânia a nível internacional ao evitar demonstrações de apoio a um dos lados da Guerra Fria, mas, em um segundo momento, se afastar até mesmo de outras nações não-alinhadas com as grandes potências e romper com a China maoísta.


Protestos, multipartidarismo e promessas não cumpridas


O general Ne Win viria a falecer apenas em 2002, aos 91 anos de idade, mas sua hegemonia como liderança no país teve seu fim ainda em 1988, quando foi deposto como consequência de protestos populares e deixou Myanmar entre os dez países mais pobres do mundo.


A mobilização em torno dos pedidos por democracia e dissolução do governo ditatorial agitou quase todo o ano de 1988, no entanto, o dia 8 de agosto acabou exclusivamente marcado pelos mais relevantes eventos, fato que acabou batizando o movimento de Revolta do dia 8888. Estudantes universitários iniciaram protestos na cidade de Rangum, à época capital, e rapidamente o fenômeno se espalhou por todo o país, abrangendo indivíduos de diversas camadas populacionais, como religiosos e intelectuais.


Aung San Suu Kyi, fundadora e secretária-geral da Liga Nacional pela Democracia

A Revolta do Poder Popular, como também é conhecido o evento, acabou não tendo o desfecho esperado pelos adeptos, pois resultou em uma reestruturação no poder que afastou o PPSB de Ne Win e manteve militares no exercício de uma ditadura velada, supostamente responsável por democratizar o país. A maior vitória dos manifestantes foi a legalização do multipartidarismo, que resultou no surgimento de figuras como Aung San Suu Kyi, secretária-geral da Liga Nacional pela Democracia (LND).


A adesão do nome Myanmar para o país intencionava representar um marco nas mudanças do cenário político local, no entanto, as primeiras eleições para a Assembleia Nacional, em 1990, mostraram que a realidade não seria assim tão aprazível. mesmo com a larga vitória da LND, que passaria a ocupar 81% dos assentos e consequentemente teriam sua líder como primeira-ministra, ainda não seria a hora da população se sentir representada. Aung San Suu Kyi foi detida pouco antes do pleito e colocada em prisão domiciliar, situação em que viveria ainda por décadas e lhe renderia o Prêmio Nobel da Paz em 1991.


Redemocratização frágil e perseguição à minoria étnica


Após quase duas décadas de crescente insatisfação popular e nova ditadura militar, que na prática não havia deixado o poder desde 1962, ocorrem em 2010 eleições para o poder legislativo. Aung San Suu Kyi foi libertada pouco tempo antes do pleito, após 15 anos detida, porém pregou boicote sob justificativa de incipiência na abertura política. Seus argumentos se mostraram ao menos parcialmente válidos quando cerca de 80% dos cargos eletivos foram ocupados por correligionários das Forças Armadas.


Povo rohingya, alvo frequente de perseguição estatal

O ano de 2015 marca o retorno da LND ao processo eleitoral, onde conseguem vitória significativa e passam a se tornar situação no país onde exerceram histórica oposição. Essa transição de posicionamento trouxe consigo uma série de polêmicas que foram arranhando a imagem de Aung San Suu Kyi frente parte da população. A mais significativa dessas polêmicas é certamente ligada às hostilidades exercidas para com o povo rohingya — etnia minoritária composta por refugiados, adepta do islamismo e concentrada no oeste do país — e o paralelo estabelecimento de laços institucionais com o militarismo em prol dessa causa xenófoba.


Eleição questionada e novo golpe militar


Com uma democracia recente e ainda frágil, vivendo sob uma constante ameaça de rompantes anti-democráticos advindos do militarismo, Myanmar viveu sua última eleição geral em novembro de 2020, em meio à pandemia de COVID-19, quando a LND voltou a vencer de forma acachapante, conquistando 83% dos cargos em disputa e reafirmando sua alta popularidade, a despeito da crise humanitária do povo rohingya. Uma vez que os eleitos teriam a responsabilidade de aprovar um novo governo, havia caminho aberto para manutenção do partido no poder.


Mais uma vez os militares entram em cena questionando a vontade popular. Dessa vez a alegação é de fraude eleitoral e a metodologia de intervenção não foge muito ao usual de outros golpes militares vistos no passado recente mundial. Após tentativa frustrada de argumentação pouco embasada na Suprema Corte do país, militares bloquearam saídas da capital, interditaram o espaço aéreo e derrubaram os sinais de internet e telefonia móvel em todo território nacional pouco antes da primeira sessão do Parlamento eleito.


Manifestantes seguram cartazes com o rosto de Aung San Suu Kyi após novo golpe militar no país

Em pouco tempo, intelectuais, ativistas e políticos de oposição foram detidos — incluindo Aung San Suu Kyi e o presidente U Win Myint, ambos da LND — bem como toda a infraestrutura nacional foi dominada pelos interventores. Anunciado oficialmente em emissora de TV administrada por militares, o golpe de Estado foi chamado de "estado de emergência nacional" e teve duração estimada em um ano, a contar a partir daquele momento.


Consequências imediatas e perspectivas


Manifestantes pró-democracia são dispersados pela polícia com canhão d'água

Com uma população bastante calejada em relação a processos golpistas e ditatoriais, o novo governo interventor "provisório", liderado pelo general Min Aung Hlaing, não tem tido vida fácil desde as primeiras horas da tomada de poder. Protestos em massa tem tomado o país, comparados em proporção ao ocorrido em 1988, o tensionamento dos militares para com seu povo já é uma realidade novamente e já existem relatos de ataques armados da polícia a manifestantes.


O futuro de Myanmar ainda é bastante nebuloso, ainda que alguns fatores possam ser previstos. Fato é que os militares nunca deixaram de ocupar uma posição bastante confortável, possuindo por lei 25% das cadeiras legislativas e alguns dos ministérios mais poderosos. Sendo assim, as motivações para este golpe recaem muito em quesitos "abstratos" como o suposto constrangimento gerado pela perda significativa na última eleição, ainda que isso não tenha significado de fato uma perda de poder.


Enquanto o Ocidente e boa parte da população birmanesa enxerga uma figura quase materna em Aung San Suu Kyi, militares locais se veem como pais do atual Myanmar, muito pela participação ativa nas cúpulas de poder há décadas. Ainda que tenha havido maior diálogo entre esses dois lados nos últimos anos — alguns diriam que por necessidade da LND em gerar governabilidade, outros que por fisiologismo político — ainda representam polos completamente conflitantes no espectro local.


Do ponto de vista internacional, o novo golpe militar ganhou rápida repercussão negativa e o recém-empossado presidente dos EUA Joe Biden já ordenou que sejam impostas sanções contra o novo regime em Myanmar. Medidas passam inclusive por bloqueio dos bens de militares birmaneses nos EUA, estimados em cerca de um bilhão de dólares. Ainda é necessário que aguardemos outros posicionamentos relevantes a mais longo prazo, mas não é preciso nem mesmo sair de Myanmar para concluirmos que já vimos essa história antes.

 

Para saber mais:


- Matéria Entenda como foi dado o golpe de Estado em Mianmar, de Russell Goldman para o The New York Times e reproduzida pela Folha de S. Paulo;


- Livro Uma Breve História da Ásia, de Colin Mason, publicado pela Editora Vozes;


- Quadrinho Crônicas Brimanesas, do canadense Guy Delisle, publicado no Brasil pela Zarabatana Books;


- Vídeo Mianmar: milhares protestam contra golpe de Estado, no canal do portal UOL no YouTube.

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