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  • Foto do escritorLuiza Azevedo

Haiti: a História que não nos contam

Atualizado: 11 de ago. de 2023

A história do Haiti é tão fascinante quanto esquecida. Foi a primeira independência da América Latina, fruto de uma revolução feita por africanos escravizados e que gerou uma Constituição que previa a igualdade racial. Sua inserção no sistema internacional veio acompanhada de embargos, dívidas e interferências estrangeiras. Vemos ainda hoje as consequências para o país da sua insubordinação às potências coloniais.


Essa história cheia de símbolos é um exemplo claro de como opera a lógica colonial - logo racista - no sistema internacional. E, ainda que sejamos um país atravessado por questões muito similares, é raro visitarmos o passado do Haiti. Por isso, escrevo aqui sobre sua colonização, independência e inserção no sistema internacional, na tentativa de somar no processo de resgate e ressignificação dessa memória tão importante para o Sul Global.


Colonização


Em 1492 os espanhóis chegaram à ilha que conhecemos hoje como Haiti, e a batizaram de Hispaniola. A colonização foi extremamente violenta e cruel com o povo nativo, os Tainos. Em 1520 eles já haviam sido quase que por completo dizimados, destino esse que viria a ser similar ao de vários outros povos nativos.


A medida que o genocídio da população nativa se concretizou, se fez necessário encontrar nova mão de obra para o plantio e para a extração de minérios. Os espanhóis então se voltaram para o continente africano. A utilização do trabalho escravo advindo da África cresceu e em pouco tempo se tornou parte fundamental do sistema colonial.



Com o avançar da expansão marítima, a Espanha tomou posse de minas no México e no Peru, que fizeram seu foco se voltar quase que por completo para a extração de metais preciosos. Sendo assim, a ilha de Hispaniola foi deixada em segundo plano. Essa desatenção permitiu que a França fizesse investidas para tomar posse da ilha.


Mapa da ilha onde hoje ficam Haiti e República Dominicana (Imagem: Brasil Escola)

Ao fim, a França conseguiu dominar metade da ilha, e a batizou de São Domingos. Hoje a ilha comporta o Haiti e a República Dominicana. A nova metrópole encontrou a possibilidade do plantio de cana para a comercialização de açúcar produzido pela da mão de obra escravizada. O Haiti foi uma colônia extremamente próspera, isso às custas das vidas africanas que foram submetidas a regimes de trabalho escravo de violência ímpar. Era comum em outras colônias reprimir escravos usando a ameaça de enviá-los para São Domingos. Nas palavras do historiador brasileiro Jacob Gorender:


"A labuta diária se processava durante longas jornadas, sob acionamento freqüente do açoite dos feitores. Qualquer expressão recalcitrante era logo duramente castigada. Os mais indisciplinados sofriam o castigo de serem enterrados de pé, apenas com a cabeça de fora. Assim imobilizados, acabavam mortos depois de sofrer a horrível tortura de ter o rosto lentamente devorado pelos insetos e abutres."


Os caminhos da Independência


Foram diversos os fatores que levaram a ilha ao processo de independência que se iniciou com a Revolução do Haiti. Dentre eles, destaco os seguintes:


Se tratava de uma Colônia muito próspera justamente pela intensa exploração já mencionada. Essa crueldade foi um agravante para que a população escravizada (que era maioria na ilha, cerca de 50 mil colonos para meio milhão de africanos e descendentes escravizados) se revoltasse.


Um movimento de resistência fundamental foi a marronagem, processo de características muito semelhante aos quilombos brasileiros. Além dele, religião vodu, carregada de simbologias de preservação, também compôs o movimento de resistência e teve papel fundamental. O vodu foi durante muito tempo cultuado através do sincretismo, trazendo mais uma semelhança com a história brasileira.


Toussaint L’Ouverture (Imagem: The New York Times)

Mais um fator que viabilizou a independência haitiana foi a habilidade militar/tática das lideranças da revolução. Essas combateram não só a França, como outras metrópoles que tinham interesse em preservar o sistema colonial. Sobre Toussaint L’Ouverture, um dos líderes mais importantes da Revolução Haitiana, Jacob Gorender coloca:


"Com uma tropa disciplinada e organizada, derrotou os exércitos dos franceses, dos espanhóis, que pretendiam apossar-se da parte francesa da ilha, e dos ingleses, preocupados com a contaminação que o exemplo da possessão francesa poderia produzir nas suas próprias possessões antilhanas."




A resposta do Sistema Internacional

A Revolução Haitiana, que teve início com um levante dos escravizados, perpassou por anos de batalha com as potências coloniais. Uma vez consolidada a independência, o Haiti em 1801 elabora sua primeira constituição na qual a igualdade racial era um princípio. O fim da escravidão na ilha foi uma ruptura vanguardista com os valores coloniais. As metrópoles por medo de levantes em suas próprias colônias, intensificaram seus mecanismos de coerção.


Revolução Haitiana (Batalha em San Domingo, January Suchodolski)

O medo causado pelo Haiti não foi irrefletido. A Revolução do Haiti inaugurou e inspirou as independências na América Latina, como foi o caso da Venezuela, Colômbia e México. Além disso, foi a única revolução escrava que levou à independência de um país no continente.


O reconhecimento internacional da vitória dos negros escravizados sobre a metrópole francesa tardou e nunca aconteceu de forma plena: os interesses econômicos somados ao racismo - essencial para a dominação colonial - fizeram com que as metrópoles iniciassem um movimento de negação da legitimidade, da história e da soberania haitiana, que reverbera até hoje.

Esse processo gerou uma dinâmica na qual as elites do Haiti se colocaram como caminho para intervenções estrangeiras em troca de apoio a sua permanência no poder. Isso custou ao país sua independência econômica e, em vários momentos, levou a criminalização da cultura, língua e religião.


As amarras do Sistema Internacional


Logo após conquistar sua independência, pressionado pelos embargos das metrópoles, o Haiti se viu obrigado a pagar uma enorme indenização a França para ser reconhecido internacionalmente. Daí surgiu uma dívida que levou a entrada dos EUA na dinâmica. O país comprou a dívida haitiana fazendo com que o Haiti se tornasse agora seu dependente.


A história se seguiu com uma intervenção estadunidense que perdurou por anos e levou o Haiti a abrir mão de sua independência econômica. Ato simbólico desse movimento foi a imposição de uma nova Constituição ao Haiti, que entre outras coisas, revogou a proibição da venda terras para estrangeiros. Dentre as razões para a insistência de se intervir na ilha podemos pontuar a localização estratégica, a liberalização da sua economia e a necessidade de provar que uma república negra não consegue se autogovernar.


Essa não foi a última vez que a soberania haitiana foi violada e o Brasil faz parte dessa história. Na tentação de compor o Conselho de Segurança da ONU o governo brasileiro, nos anos Lula, se empenhou nas famigeradas Missões de Paz.


Minustah (Foto: Tereza Sobreira)

Em 2004 foi estabelecida a Minustah (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti), que recebeu duras críticas por promover violações de Direitos Humanos. A Minustah foi encabeçada pelo exército brasileiro e serviu como treinamento para aplicação no Brasil, em específico nas operações nas favelas do Rio de Janeiro.


Um episódio emblemático da missão no Haiti foi a operação de pacificação da favela Cité Soleil, na qual 63 haitianos foram assassinados e 30 ficaram feridos. Os moradores alegam que as operações eram feitas sem preparo, agravando os conflitos já existentes. Na ocasião o comandante da Minustah era o General Heleno, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional do atual governo de Jair Bolsonaro.


O Haiti e uma nova perspectiva


Ao repensarmos os processos de colonização, é de suma importância que resgatemos a história haitiana. Sua revolução e independência é basilar não só para a memória latino americana, mas para a história das lutas anti-coloniais do Sul Global. Isso porque os processos históricos do Haiti evidenciam o caráter racista do sistema internacional, diferente do que é vendido na perspectiva eurocêntrica, que não coloca as metrópoles europeias como agentes no movimento de isolamento e exploração da população haitiana. Se hoje o Haiti vive uma realidade de pobreza, não é pelo acaso, mas pelo histórico de exploração, boicotes e invasões feitas pelos países que hoje chamamos de desenvolvidos.

 

Para saber mais:


- Matéria A mais universal das Revoluções, de Marcos Queiroz para a revista Jacobin Brasil;


- Livro Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a revolução de São Domingos, de C.R.L. James, publicado pela editora Boitempo;


- Livro Haiti: Dois Séculos de História, de Everaldo de Oliveira Andrade, publicado pela Alameda Editorial;


- Artigo O épico e o trágico na história do Haiti, de Jacob Gorender;



recolonização do Haiti, de Franck Seguy.

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