A história do Haiti é tão fascinante quanto esquecida. Foi a primeira independência da América Latina, fruto de uma revolução feita por africanos escravizados e que gerou uma Constituição que previa a igualdade racial. Sua inserção no sistema internacional veio acompanhada de embargos, dívidas e interferências estrangeiras. Vemos ainda hoje as consequências para o país da sua insubordinação às potências coloniais.
Essa história cheia de símbolos é um exemplo claro de como opera a lógica colonial - logo racista - no sistema internacional. E, ainda que sejamos um país atravessado por questões muito similares, é raro visitarmos o passado do Haiti. Por isso, escrevo aqui sobre sua colonização, independência e inserção no sistema internacional, na tentativa de somar no processo de resgate e ressignificação dessa memória tão importante para o Sul Global.
Colonização
Em 1492 os espanhóis chegaram à ilha que conhecemos hoje como Haiti, e a batizaram de Hispaniola. A colonização foi extremamente violenta e cruel com o povo nativo, os Tainos. Em 1520 eles já haviam sido quase que por completo dizimados, destino esse que viria a ser similar ao de vários outros povos nativos.
A medida que o genocídio da população nativa se concretizou, se fez necessário encontrar nova mão de obra para o plantio e para a extração de minérios. Os espanhóis então se voltaram para o continente africano. A utilização do trabalho escravo advindo da África cresceu e em pouco tempo se tornou parte fundamental do sistema colonial.
Com o avançar da expansão marítima, a Espanha tomou posse de minas no México e no Peru, que fizeram seu foco se voltar quase que por completo para a extração de metais preciosos. Sendo assim, a ilha de Hispaniola foi deixada em segundo plano. Essa desatenção permitiu que a França fizesse investidas para tomar posse da ilha.
Ao fim, a França conseguiu dominar metade da ilha, e a batizou de São Domingos. Hoje a ilha comporta o Haiti e a República Dominicana. A nova metrópole encontrou a possibilidade do plantio de cana para a comercialização de açúcar produzido pela da mão de obra escravizada. O Haiti foi uma colônia extremamente próspera, isso às custas das vidas africanas que foram submetidas a regimes de trabalho escravo de violência ímpar. Era comum em outras colônias reprimir escravos usando a ameaça de enviá-los para São Domingos. Nas palavras do historiador brasileiro Jacob Gorender:
"A labuta diária se processava durante longas jornadas, sob acionamento freqüente do açoite dos feitores. Qualquer expressão recalcitrante era logo duramente castigada. Os mais indisciplinados sofriam o castigo de serem enterrados de pé, apenas com a cabeça de fora. Assim imobilizados, acabavam mortos depois de sofrer a horrível tortura de ter o rosto lentamente devorado pelos insetos e abutres."
Os caminhos da Independência
Foram diversos os fatores que levaram a ilha ao processo de independência que se iniciou com a Revolução do Haiti. Dentre eles, destaco os seguintes:
Se tratava de uma Colônia muito próspera justamente pela intensa exploração já mencionada. Essa crueldade foi um agravante para que a população escravizada (que era maioria na ilha, cerca de 50 mil colonos para meio milhão de africanos e descendentes escravizados) se revoltasse.
Um movimento de resistência fundamental foi a marronagem, processo de características muito semelhante aos quilombos brasileiros. Além dele, religião vodu, carregada de simbologias de preservação, também compôs o movimento de resistência e teve papel fundamental. O vodu foi durante muito tempo cultuado através do sincretismo, trazendo mais uma semelhança com a história brasileira.
Mais um fator que viabilizou a independência haitiana foi a habilidade militar/tática das lideranças da revolução. Essas combateram não só a França, como outras metrópoles que tinham interesse em preservar o sistema colonial. Sobre Toussaint L’Ouverture, um dos líderes mais importantes da Revolução Haitiana, Jacob Gorender coloca:
"Com uma tropa disciplinada e organizada, derrotou os exércitos dos franceses, dos espanhóis, que pretendiam apossar-se da parte francesa da ilha, e dos ingleses, preocupados com a contaminação que o exemplo da possessão francesa poderia produzir nas suas próprias possessões antilhanas."
A resposta do Sistema Internacional
A Revolução Haitiana, que teve início com um levante dos escravizados, perpassou por anos de batalha com as potências coloniais. Uma vez consolidada a independência, o Haiti em 1801 elabora sua primeira constituição na qual a igualdade racial era um princípio. O fim da escravidão na ilha foi uma ruptura vanguardista com os valores coloniais. As metrópoles por medo de levantes em suas próprias colônias, intensificaram seus mecanismos de coerção.
O medo causado pelo Haiti não foi irrefletido. A Revolução do Haiti inaugurou e inspirou as independências na América Latina, como foi o caso da Venezuela, Colômbia e México. Além disso, foi a única revolução escrava que levou à independência de um país no continente.
O reconhecimento internacional da vitória dos negros escravizados sobre a metrópole francesa tardou e nunca aconteceu de forma plena: os interesses econômicos somados ao racismo - essencial para a dominação colonial - fizeram com que as metrópoles iniciassem um movimento de negação da legitimidade, da história e da soberania haitiana, que reverbera até hoje.
Esse processo gerou uma dinâmica na qual as elites do Haiti se colocaram como caminho para intervenções estrangeiras em troca de apoio a sua permanência no poder. Isso custou ao país sua independência econômica e, em vários momentos, levou a criminalização da cultura, língua e religião.
As amarras do Sistema Internacional
Logo após conquistar sua independência, pressionado pelos embargos das metrópoles, o Haiti se viu obrigado a pagar uma enorme indenização a França para ser reconhecido internacionalmente. Daí surgiu uma dívida que levou a entrada dos EUA na dinâmica. O país comprou a dívida haitiana fazendo com que o Haiti se tornasse agora seu dependente.
A história se seguiu com uma intervenção estadunidense que perdurou por anos e levou o Haiti a abrir mão de sua independência econômica. Ato simbólico desse movimento foi a imposição de uma nova Constituição ao Haiti, que entre outras coisas, revogou a proibição da venda terras para estrangeiros. Dentre as razões para a insistência de se intervir na ilha podemos pontuar a localização estratégica, a liberalização da sua economia e a necessidade de provar que uma república negra não consegue se autogovernar.
Essa não foi a última vez que a soberania haitiana foi violada e o Brasil faz parte dessa história. Na tentação de compor o Conselho de Segurança da ONU o governo brasileiro, nos anos Lula, se empenhou nas famigeradas Missões de Paz.
Em 2004 foi estabelecida a Minustah (Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti), que recebeu duras críticas por promover violações de Direitos Humanos. A Minustah foi encabeçada pelo exército brasileiro e serviu como treinamento para aplicação no Brasil, em específico nas operações nas favelas do Rio de Janeiro.
Um episódio emblemático da missão no Haiti foi a operação de pacificação da favela Cité Soleil, na qual 63 haitianos foram assassinados e 30 ficaram feridos. Os moradores alegam que as operações eram feitas sem preparo, agravando os conflitos já existentes. Na ocasião o comandante da Minustah era o General Heleno, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional do atual governo de Jair Bolsonaro.
O Haiti e uma nova perspectiva
Ao repensarmos os processos de colonização, é de suma importância que resgatemos a história haitiana. Sua revolução e independência é basilar não só para a memória latino americana, mas para a história das lutas anti-coloniais do Sul Global. Isso porque os processos históricos do Haiti evidenciam o caráter racista do sistema internacional, diferente do que é vendido na perspectiva eurocêntrica, que não coloca as metrópoles europeias como agentes no movimento de isolamento e exploração da população haitiana. Se hoje o Haiti vive uma realidade de pobreza, não é pelo acaso, mas pelo histórico de exploração, boicotes e invasões feitas pelos países que hoje chamamos de desenvolvidos.
Para saber mais:
- Matéria A mais universal das Revoluções, de Marcos Queiroz para a revista Jacobin Brasil;
- Livro Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a revolução de São Domingos, de C.R.L. James, publicado pela editora Boitempo;
- Livro Haiti: Dois Séculos de História, de Everaldo de Oliveira Andrade, publicado pela Alameda Editorial;
- Artigo O épico e o trágico na história do Haiti, de Jacob Gorender;
- Artigo Para além da colonialidade: os desafios e as possibilidades da transição democrática no Haiti, de Germana Dalberto;
recolonização do Haiti, de Franck Seguy.
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