top of page
  • Foto do escritorFelipe Vidal

Guerra das Malvinas

Atualizado: 11 de ago. de 2023

É bastante comum discutirmos sobre as heranças coloniais em vários aspectos de nossa sociedade ou até mesmo institucionalmente, mas o caso específico da curta e violenta Guerra das Malvinas nos mostra que não precisamos nos ater somente aos fatores mais abstratos desse debate para percebermos seus impactos. Os arquipélagos das Ilhas Malvinas — ou Ilhas Falklands — e das Ilhas Sandwich do Sul, além da pequena ilha da Geórgia do Sul, são territórios localizados na América do Sul e até hoje dominados pelo Reino Unido. Não estamos tratando de uma exclusividade da região, mas esse exemplo em especial tem muito a nos acrescentar no debate sobre autodeterminação e colonialismo.


Contexto histórico da região


Pintura de almirante da Marinha Real Britânica, datada de 1849

Como se não bastasse o processo colonial das Américas, iniciado no século XV, a disputa entre potências europeias pelos arquipélagos se arrastou por décadas desde sua ocupação, em 1690. França, Espanha e o próprio Reino Unido reivindicaram para si o direito de estabelecimento ali, porém em geral mantendo o debate nas mesas de negociações, até mesmo pela relevância questionável das terras. Com apenas 480km separando sua costa austral do palco da ocupação europeia, a recém independente Argentina se considera herdeira das antigas posses territoriais espanholas, então passa a ser mais um ator no já complexo cenário. O martelo acaba sendo batido em 1833, com a ocupação britânica da região — se baseando grandemente em sua superioridade militar inquestionável, ainda que movimentos militares formais de larga escala não tenham sido necessários.


Localização e dimensões diminutas das ilhas Sandwich do Sul e Georgia do Sul

Em termos práticos, a Geórgia do Sul e as Ilhas Sandwich do Sul não possuem sequer habitantes nativos até hoje, então as atenções se centram nas Ilhas Malvinas, onde a colonização britânica não foi muito diferente da praticada em pequenas ilhas caribenhas e uma população local de ascendência europeia acabou formada — os kelpers. Antiga referência geográfica na caça de baleias, a região perdeu até mesmo esse contraditório prestígio devido à prática indiscriminada. Em suma, sua posse passou a ser uma questão muito mais conectada ao ideal do orgulho patriótico, para ambos os lados, do que alimentada por interesses econômicos, ainda que para fins militares se trate de um posto avançado estratégico e a exploração recente de petróleo esteja avançando.


Resgate das tensões


Presidente argentino Juan Domingo Perón

Apesar da resolução pouco amistosa, as relações entre Argentina e a região ocupada por britânicos se desenrolaram de maneira tranquila pela maior parte do tempo, incluindo existência futura de voos regulares entre os territórios e assistência argentina na providência de itens de difícil acesso para os habitantes insulares. No entanto, a segunda metade do século XX guardava reviravoltas para o caso e um marco para isso foi a afirmação do então presidente Juan Domingo Perón de soberania argentina sobre o arquipélago.


Reacender tal debate voltou a mobilizar bastidores em prol do assunto e, em 1965, a Assembleia Geral da ONU aprovou a chamada Resolução 2065, na qual reconhecia a condição colonial da região e pedia aos envolvidos que encontrassem uma solução pacífica para o caso baseados na premissa estabelecida pela Resolução 1514 — de alguns anos antes — que intencionava eliminar todas as formas de colonialismo pelo mundo.


Tal recomendação foi inicialmente seguida, pois também parecia conveniente aos britânicos se livrar da despropositada despesa de manutenção das ilhas. Avanços importantes aconteceram nesse período, como acordos comerciais e consultas aos habitantes do arquipélago sobre sua vontade, algo que também fazia parte do aconselhamento da ONU. Uma relevante resistência política no Reino Unido — que considerava a negociação uma demonstração de fraqueza — acabou freando esse movimento de aproximação e novo tensionamento ganhou força a partir de 1981.


Ditadura argentina e a cortina de fumaça


Governada desde 1976 por uma duríssima ditadura militar, a Argentina vivia internamente, no início da década de 80, alguns de seus momentos mais conturbados, com crescente desconfiança popular em relação àqueles que se mostravam cada vez menos aptos a exercer o poder e mais adeptos da repressão violenta. As sucessivas trocas na chefia da Junta Militar que liderava o país pareciam já não surtir mais efeito e a crise econômica se aprofundava a passos largos.


Dado esse cenário, o general Leopoldo Galtieri — presidente argentino à época — considerou razoável reavivar o espírito patriótico, que já havia sustentado o golpe de Estado, através de uma ofensiva para retomada dos arquipélagos. O que os politicamente pouco habilidosos generais argentinos não levaram em conta foi o contexto da Guerra Fria que permeava o mundo, acarretando nas inúmeras possibilidades de apoio que o já mais forte Reino Unido teria em uma contraditória luta anticolonial de uma ditadura militar de direita na América Latina.


Conflito armado


Nome britânico do território riscado em manifestação

O mês de abril de 1982 marca a chegada das primeiras tropas argentinas para retomada das agora oficialmente chamadas Ilhas Malvinas. Os primeiros momentos não pareciam desmentir as previsões argentinas, uma vez que Margaret Thatcher — então primeira-ministra britânica — demonstrava ter problemas maiores para cuidar em seu próprio território. Também era crescente a insatisfação de uma fatia relevante de britânicos para com as reformas econômicas implementadas pela Dama de Ferro.


Milhares de argentinos celebram a chegada das tropas às Ilhas Malvinas

Internamente o movimento parecia ter funcionado e milhares de argentinos comemoravam a notícia em em frente à Casa Rosada, sede governamental em Buenos Aires. Apesar do uso por ditadores como cortina de fumaça para suas violações aos direitos humanos e incompetência em gerir o país, a ocupação das ilhas guardava uma forte carga simbólica de resistência anticolonial, afinal seria o fim de 149 anos de ocupação britânica em território argentino — sob a ótica daquele povo.


Margaret Thatcher com tropa de combatentes da Guerra das Malvinas

Contudo, detentora de habilidade diplomática imensuravelmente maior que a de nossos hermanos, Thatcher rapidamente angariou o apoio das maiores potências e a chancela da ONU para se posicionar de acordo com o que considerasse adequado. Como supracitado, apoiar o Reino Unido pareceu muito mais razoável aos olhos dos EUA, uma vez que ambos são membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o bom funcionamento da mesma era essencial na manutenção do equilíbrio na Guerra Fria contra a URSS.


Já a potência soviética não teria o menor interesse em apoiar oficialmente o regime militar argentino, mais cedo estabelecido com base em uma suposta luta anti-comunista na região. Futuramente a Argentina ainda ganharia afagos soviéticos através de declarações oficiais criticando o massacre das potências ocidentais a um país mais fraco, mas nada que pudesse de fato ajudar na luta armada. A cooperação inusitada aos latino-americanos veio da Líbia — de Muammar Kadhafi — ao enviar mísseis soviéticos modernos a fim de minimizar o enorme desequilíbrio do conflito.


A reação britânica não tardou e tampouco encontrou resistência capaz de rivalizar com o poderio daquela que havia sido por séculos a força armada mais poderosa do mundo. O envio de mais de uma centena de navios de guerra e algumas dezenas de milhares de soldados fez com que as baixas argentinas fossem numerosas e em pouco mais de dois meses a região estivesse sob posse do Reino Unido novamente.


Consequências imediatas


A derrota acachapante foi crucial para a ruína da já debilitada ditadura militar na Argentina, que logo em 1983 foi palco dos primeiros passos da restauração de sua democracia. Entre outros fatores práticos, o apoio estadunidense aos britânicos no infame conflito em um contexto de histórico suporte irrestrito às ditaduras autoproclamadas anti-comunistas na América Latina foi um duro golpe aos repressores de toda a região.


Já no Reino Unido, a vitória ganhou ares de campanha eleitoral e colaborou muito para que o tradicional Partido Conservador, de Margaret Thatcher, fosse reconduzido ao poder nas eleições do mesmo ano.


Situação atual e polêmicas


Cristina Kirchner tenta entregar documento acerca das Malvinas ao primeiro-ministro britânico David Cameron

No recente ano de 2012, a então mandatária argentina Cristina Kirchner — atual vice-presidente — emitiu um inusitada reivindicação durante uma cúpula do G20, onde acusou o Reino Unido de manter enclaves coloniais pela manutenção dos arquipélagos que seriam argentinos por direito. Tal incursão diplomática incluiu a tentativa de entrega de um documento — futuramente publicizado — contendo uma série de propostas para o diálogo, porém o mesmo foi negado pelo primeiro-ministro britânico David Cameron, que pouco depois diria não ter planos de mudanças na situação da região.


Momento em que Papa Francisco recebe cartaz revindicando o diálogo acerca das Malvinas

Um pouco depois, em 2015, foi a vez do Papa Francisco, ex-arcebispo de Buenos Aires, ser inserido no debate sobre a polêmica disputa. Ao receber um cartaz que reivindicava a renegociação da região, o pontífice teve sua imagem compartilhada pela presidente Kirchner em redes sociais e recebeu críticas tanto do governo britânico quanto dos kelpers, os habitantes locais.


Oficialmente chamado pelo Brasil de Ilhas Malvinas, por reconhecer o pleito argentino, o território ainda é protagonista de uma série de controvérsias nos debates políticos contemporâneos, apesar do fim das hostilidades armadas e restabelecimento das relações oficiais entre os beligerantes desde 1990. O princípio da autodeterminação tem sido o principal argumento britânico para manutenção da soberania, uma vez que numerosos referendos já foram realizados e a população local, em sua esmagadora maioria, defende a manutenção da ocupação europeia.


Por outro lado, a Argentina mantém viva a Secretaria de Assuntos Relativos às Ilhas Malvinas como um braço do Ministério de Relações Exteriores do país. Criado por Cristina Kirchner em 2013, após o incidente diplomático supracitado, o órgão chegou a ser dissolvido durante o mandato de Mauricio Macri, mas já foi reativado. O governo argentino alega ainda que o interesse dos kelpers na permanência da ocupação britânica é causado por se tratar de uma população artificial, consequência direta do processo colonial exercido por lá.

 

Para saber mais:


- Livro A Outra Guerra do Fim do Mundo: A Batalha pelas Malvinas e a América do Sul, de Osvaldo Coggiola, publicado pela Ateliê Editoral;


- Livro Foi por Pouco: Breve História da Guerra das Malvinas, de Russell Phillips, publicado de maneira independente;


- Livro Kelpers: Ni ingleses ni argentinos, de Natasha Niebieskikwiat, publicado originalmente em espanhol e em formato eBook pela editora Sudamericana;


- Livro The Malvinas Trilogy, de James Philip, publicado originalmente em inglês, em formato eBook e de maneira independente;


- Livro Kelper, de Raul Vieytes, publicado originalmente em espanhol pela Editora Aguilar;


- Vídeo Ilhas Malvinas, do professor Filipe Figueiredo para o canal Nerdologia no YouTube.

Comments


bottom of page