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  • Foto do escritorMariangela Nuernberg

Fraude, golpe e lítio: Um panorama da atual crise política na Bolívia

Atualizado: 11 de ago. de 2023

Além das problemáticas causadas pela pandemia do novo coronavírus, diversos países também estão passando por crises de ordem política nos últimos meses. Esse é o caso da nossa vizinha Bolívia, onde a crise que teve início em outubro de 2019 não parece dar sinais de que vai se encerrar tão cedo. A população que foi às ruas no ano passado em protestos históricos pelo país, este ano volta a se manifestar para exigir a realização de eleições, mesmo durante a pandemia. Essa análise pretende servir como um resumo das circunstâncias até agora, apresentando os personagens-chave da crise e uma possível causa para ela.


Manifestantes carregam a Whipala, símbolo do povo aimará e uma das bandeiras oficiais do Estado Plurinacional da Bolívia (Carlos Garcia Rawlins/Reuters)

A figura central de toda a situação é o ex-presidente Juan Evo Morales Ayma, que ascendeu ao cargo do país em 2006, durante o período que ficou conhecido como onda rosa na América Latina, quando foram eleitos diversos chefes de Estado alinhados a partidos de esquerda. Ao longo dos três mandatos de Morales — o primeiro descendente indígena a assumir o governo —, a Bolívia viveu o milagre econômico boliviano, período em que uma série de medidas adotadas pelo governo causaram um significativo aumento do PIB per capita e redução da desigualdade social.


Na época em que foi eleito pela primeira vez, a reeleição não era possível no país. Porém, em 2009, quando foi promulgada a nova Constituição que fundava o Estado Plurinacional da Bolívia, foi aberta a possibilidade para duas reeleições consecutivas para mandatos de cinco anos cada. Com isso, o então presidente pôde se eleger novamente em 2010 e 2015. No ano de 2016, foi convocado um referendo popular para permitir que o presidente concorresse a seu quarto mandato em 2019, o qual recebeu a negativa da população. Determinado a participar do pleito, Morales recorreu à Suprema Corte da Bolívia e conseguiu autorização para participar das eleições, com a justificativa de que a campanha pelo “não” havia espalhado fake news sobre o presidente.


Sob esse contexto, a eleição presidencial do dia 20 de outubro de 2019 foi o estopim da crise política no país. Quando a apuração dos votos já estava em cerca de 80% e mostrava uma pequena vantagem de Morales e a possibilidade da realização do segundo turno, o Supremo Tribunal Eleitoral suspendeu a contagem e a retomou somente no dia seguinte, já mostrando a vitória do candidato ainda no primeiro turno.


Esse episódio levou à suspeita de fraude na contagem dos votos, causando massivas manifestações por todo o país incentivadas pela oposição e despertou a reação da Organização dos Estados Americanos (OEA), que realizou uma auditoria nos resultados e apontou ser estatisticamente improvável que Morales tivesse de fato vencido a eleição no primeiro turno. Mesmo após o presidente anunciar a realização de novas eleições, as Forças Armadas publicaram um comunicado pressionando-o para que saísse do governo. Na mesma noite, Evo Morales renunciou ao cargo, dizendo que estava sofrendo um golpe de Estado cívico-policial. Além dele, também foram forçados a renunciar seu vice, os chefes do Senado e da Câmara e vários ministros aliados.


Jeanine Áñez: "Deus permitiu que a Bíblia voltasse a entrar no Palácio. Que Ele nos abençoe" (Carlos Garcia Rawlins/Reuters)

Com a renúncia conjunta de toda a linha de sucessão da presidência, a segunda vice-presidente do Senado e opositora ao governo Jeanine Áñez aproveitou o cargo vago e se autoproclamou presidente do país movimento que muitos cientistas políticos alegam ter sido ilegítimo por não estar previsto na Constituição e não ter havido quorum suficiente na sessão do Congresso. A promessa de Áñez foi que somente assumiria a função para realizar novas eleições, agendando-a para a primeira semana de maio de 2020.


Mas não foi o que aconteceu. A pandemia do novo coronavírus que vem assolando o mundo desde o primeiro trimestre deste ano tem sido usada como justificativa para a não realização das eleições presidenciais na Bolívia. O governo interino já adiou o pleito por três vezes, passando de maio para agosto, de agosto para setembro, e agora para outubro. Por consequência desses adiamentos, mesmo com a alta dos números de casos da COVID-19 no país, os bolivianos têm novamente feito manifestações acusando a presidente interina de usar a emergência sanitária para ampliar sua permanência no poder e, assim, estabelecer as pautas neoliberais no país.


Desde que o governo interino assumiu a presidência, a direita conservadora do país demonstra vários indícios de que não quer entregará o cargo para a oposição tão cedo e suspeita-se também que está sendo articulado o apoio militar para manutenção de Áñez no cargo. Isso porque uma das primeiras medidas tomadas pela presidente provisória foi a emissão de um decreto isentando as Forças Armadas de responsabilidade penal durante a repressão de manifestações. Além disso, em junho de 2020, violando a Constituição, o governo interino promoveu diversos membros das Forças Armadas sem o aval do Senado, onde a maioria dos parlamentares é do partido Movimento Ao Socialismo (MAS), o mesmo de Evo Morales. É interessante apontar também que após recentes pesquisas de intenção de voto mostrarem que o candidato do MAS, Luiz Arce, é o favorito para a presidência, o governo interino vem tentando impedir a todo o custo a participação do partido nas próximas eleições, chegando até a solicitar sua suspensão ao Tribunal Superior Eleitoral.


Apesar do temor de aglomerações ser uma justificativa plausível, o fato é que o adiamento do pleito dá mais tempo para que tanto Jeanine Áñez, que declarou que também será candidata, quanto os outros dois candidatos de extrema direita melhorem sua imagem perante a população, já que os três juntos não chegam a 20% das intenções de voto. Áñez, por exemplo, nunca foi bem vista por parte da população desde antes de ser presidente, devido a seu histórico de desrespeito para com a cultura do povo aimará (etnia tradicional do país e da qual descende a grande maioria da população) — o que piorou no dia de sua posse, quando ela declarou que “a bíblia retornou ao Governo”, numa clara afronta ao ex-presidente, que foi o primeiro indígena a chegar à presidência e que baniu a presença do livro no governo por acusar o Cristianismo de promover o assassinato de nativos na colônia. Agora que é candidata, Áñez mudou seu discurso e está tendo tempo de criar a narrativa de que é contra a discriminação, chegando até a demitir um ministro que havia feito comentários racistas. Além disso, após escândalos de corrupção envolvendo a compra de insumos médicos, a presidente começou a atacar seus próprios ministros buscando manter sua imagem fortalecida perante os eleitores, já que a suspeita de corrupção foi um dos fatores que levou parte da população a opor-se ao antigo governo. Com isso, busca também distrair o povo de sua má gestão da pandemia no país, que já passou dos 90 mil casos da doença e acumula mortos nas ruas.


Numa tentativa de garantir que as eleições se realizem mesmo em outubro, o MAS impôs condições para aceitar a nova data e cessar as manifestações: que seja definida por uma lei e não por uma resolução, que a data seja definitiva e que o acordo tenha o aval da comunidade internacional. O presidente do TSE declarou que a data é "definitiva, imóvel e inadiável do processo eleitoral de 2020". Mas agora resta-nos esperar para ver se as medidas propostas de fato garantirão que a eleição de aconteça na data marcada. E enquanto isso, o governo interino continua a perseguição aos líderes das manifestações contra o adiamento do pleito.


A população aimará extrai o sal da superfície do Salar de Uyuni. O lítio está dissolvido nas profundezas do Salar. (Cédric Gerbehaye)

A pressão do exército e da polícia para a renúncia de Evo Morales e a subsequente perseguição aos membros de seu governo reforçam a narrativa de que o que houve em 2019 foi sim um golpe de Estado. Em junho de 2020, essa teoria ganhou mais forças após a divulgação de um estudo feito por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT) que refuta o laudo da OEA, mostrando que não há nenhuma evidência estatística de fraude nas eleições de 2019. Mas fica o questionamento: por que a OEA teria interesse em derrubar o governo de Evo Morales?


Uma das teorias para explicar o golpe gira em torno do lítio. Até algumas décadas atrás, o elemento nunca havia sido de grande importância para a indústria, mas, com o advento da era dos celulares e notebooks cada vez mais finos e dos carros elétricos, descobriu-se que o lítio seria a matéria prima ideal para fabricar pilhas leves. Acontece que a maior reserva de lítio do planeta é o Salar de Uyuni, que fica na Bolívia. Logo no início do primeiro mandato de Evo Morales, ele já havia declarado: “O Estado nunca abrirá mão da soberania em relação ao lítio.” E assim, através de sua política de nacionalização das reservas, impôs diversas condições para liberar a exploração do metal por empresas transnacionais, por considerar que o importante era priorizar as mineradoras nacionais. Morales então passou a ser visto como um obstáculo que precisava sair.


Recentemente, essa teoria ganhou força na internet quando um usuário do Twitter provocou Elon Musk, dizendo que os EUA haviam financiado o golpe contra Evo Morales para poder explorar o metal, e o dono da Tesla, a maior fabricante de carros elétricos do mundo, respondeu: Vamos dar um golpe em quem quisermos. Lide com isso. Outro tweet que também contribui para essa teoria é de autoria do empresário boliviano e atual candidato a vice-presidência na chapa de Jeanine Áñez, Samuel Doria Medina, em referência ao anúncio da construção de uma fábrica da Tesla no Brasil: “Sugiro que acrescentemos a iniciativa de construir uma Giga-fábrica no Salar de Uyuni para fornecer as baterias de lítio”. Essas declarações mais do que levantam suspeitas sobre os rumos que a exploração do lítio na Bolívia tomará nos próximos anos.


Uma coisa é certa: a crise política na Bolívia está longe de acabar. A eleição presidencial do dia 18 de outubro será crucial para determinar o futuro do país — se de fato acontecer. E para deixar você, leitor, a par da situação toda, nós do Bússola do Sul nos comprometemos a atualizar esse artigo com os futuros desdobramentos da crise.

 

Para saber mais:


- Livro A Revolução Boliviana, de Everaldo de Oliveira Andrade, publicado pela Editora Unesp;


- Matéria Lítio: a riqueza no deserto de sal da Bolívia, de Erico Fantoni para a Revista Galileu;


- Vídeo-entrevista Evo Morales fala sobre o golpe e a ditadura na Bolívia, do ex-presidente boliviano para o canal da Revista Fórum no YouTube.

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