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  • Foto do escritorFelipe Vidal

Crise do populismo guatemalteco e a "Revolución de los Frijoleros"

Atualizado: 11 de ago. de 2023

São raras as vezes que vemos algum país da América Central nas páginas principais dos noticiários brasileiros, mas isso tem acontecido com uma frequência incomum no últimos dias, através da presença da Guatemala no centro das atenções. Os motivos poderiam ser os mais diversos possíveis, pois as movimentações políticas e sociais no pequeno território hispanofalante tem seguido há anos o roteiro de uma boa república latino-americana. Ditadura, golpe de Estado, revolução, guerrilha, repressão e tudo mais que afligiu quase todos nossos vizinhos também marcou a história recente do povo guatemalteco. Na impossibilidade de me aprofundar sobre todos esses aspectos históricos que contextualizam o país, prometo me esforçar pra explicar ao menos como chegamos até a manchete Manifestantes ateiam fogo no Congresso da Guatemala.


A figura de Alejandro Giammattei e sua chegada ao poder


Presidente guatemalteco Alejandro Giammattei

Ainda no ano passado em um mundo que parece tão perto temporalmente e tão distante em termos de conjuntura —, o conservador Alejandro Giammattei era eleito presidente da República da Guatemala no segundo turno de um pleito marcado pela abstenção recorde. O candidato do Vamos concorria contra a ex-primeira-dama Sandra Torres, liderança da Unidad Nacional de la Esperanza — partido de centro-esquerda no espectro político local. A grande rejeição popular à candidatura de Torres foi o principal combustível para Giammattei, que conseguiu alcançar seu objetivo com menos de dois milhões de votos em um país com mais de oito milhões de potenciais eleitores.


A receita citada acima não chega a ser novidade para o mundo nos últimos anos, já que Giammattei pertence a uma mesma onda de candidaturas populistas de direita que vem "pra mudar tudo isso aí", mas na prática nem tanto. Iniciado na vida política institucional apenas em 2007, quando se filiou ao seu partido, o guatemalteco era, até então, diretor do Sistema Penitenciário nacional, algo que em muito explica sua plataforma agressiva no quesito segurança pública — outra máxima bastante recorrente entre seus pares mundo afora. Giammattei era ainda considerado o herdeiro direto de Jimmy Morales, que deixava o cargo de presidente naquele momento, com uma das mais baixas popularidades da região, e foi eleito anteriormente com o mesmo discurso "anticlasse política", segundo suas palavras.


Caravana de refugiados sendo detida pela polícia guatemalteca

Assim que empossado, em 2020, o novo presidente seguiu à risca o script dos inúmeros recém eleitos que se autodeclaravam conservadores nos costumes e liberais na economia. Alinhamento irrestrito às políticas de Donald Trump, rompimento das relações com a Venezuela de Maduro e comunhão com outras lideranças conservadoras ascendentes na região — representadas por elementos do Grupo de Lima. Soma-se a isso a prisão de uma caravana de três mil refugiados hondurenhos que rumavam aos EUA através de seu território. No entanto, 2020 apenas começava e hoje já sabemos que a situação não ficou muito propícia para os despreparados populistas, ditos outsiders.


Desastres naturais e COVID-19


O mês de março chegou trazendo consigo o primeiro caso de COVID-19 no país, trazido por um homem que regressava da Itália — à época o epicentro mundial. Em questão de dias a situação começou a fugir do controle e foram tomadas medidas com as quais agora já estamos familiarizados, como cancelamento de festejos importantes e toques de recolher. Ao decretar estado de calamidade, o governo limitou também uma série de liberdades da população, que passou a contar os dias para a normalização das atividades e teve sua paciência testada pelas prorrogações sucessivas do decreto.


Inserida no contexto global de estagnação econômica e insatisfação social, porém com uma fragilidade prévia significativa, a Guatemala passou a vislumbrar um pós-pandemia nada animador. Giammattei contraiu a doença já em setembro e teve sua recuperação seguida de uma tentativa de reabertura nacional. Como experimentado em outros países, o processo acarretou uma segunda onda que acomete o povo guatemalteco até hoje. O tratamento dado pelo governo Giammattei à pandemia foi alvo de diversas acusações da oposição, que vão desde denúncias de corrupção até o tristemente tradicional sucateamento do sistema hospitalar.


Cenário deixado pela tempestade Eta na Guatemala

Como se não bastasse ter que lidar com a pandemia, que devastou até mesmo grandes potências mundiais, a Guatemala ainda precisou enfrentar desastres naturais que destruíram regiões da América Central. A primeira de novembro, há algumas semanas, foi a tempestade Eta, que soterrou mais de 150 casas e deixou ao menos uma centena de mortos. Estima-se que pelo menos 75 mil guatemaltecos tenham sido atingidos pelas chuvas, especialmente nas regiões mais carentes do país. A ocasião serviu politicamente para que Giammattei reforçasse seus laços com os EUA, ao pedir recursos, e levasse ao Congresso um novo decreto de estado de calamidade.


Ainda que tenha perdido força antes de chegar ao país, o furacão Iota acabou significando uma catástrofe dentro da catástrofe ao chegar na Guatemala menos de duas semanas depois do primeiro desastre. Países vizinhos foram imensamente impactados, em especial El Salvador, e ao povo guatemalteco parecia restar que contassem com a sorte, já que o governo demonstrava maior preocupação com a sua manutenção no poder.


Projeto orçamentário e manifestações populares


Giammattei venceu as eleições presidenciais de 2019 dizendo que "não seria o primeiro mandatário, mas o primeiro servidor da nação", contudo, não é bem assim que o povo o tem enxergado um ano depois. A saraivada de críticas começou logo cedo, até porque, como mencionado anteriormente, os votos que o elegeram não representam nem um quarto da população do país. No entanto, o marinheiro de primeira viagem não foi capaz de lidar de forma minimamente razoável com um 2020 que seria duro até para os políticos mais cascudos.


A vasilha armazenando todas as insatisfações que se acumulam desde antes mesmo do mandato Giammattei recebeu a gota d'água com a aprovação do orçamento para 2021. Se trata do maior da história, com uma série de extravagâncias — como US$ 65 mil de auxílio alimentar para parlamentares — e sem nenhuma transparência. O projeto conta ainda com um aumento do já descontrolado endividamento do país, sem especificar o destino desses recursos. Sua aprovação se deve muito ao fato do Congresso ser controlado pela base governista, no entanto a oposição ganhou um aliado de peso: o povo. Manifestações populares começaram a se intensificar, ainda que a pandemia não tenha deixado de ser um problema, e o governo começa a demonstrar sinais de desgaste.


Jovem celebra na frente do Congresso em chamas

O vice-presidente Guillermo Castillo já entrou em rota de colisão com seu companheiro de chapa ao sugerir que atender o clamor popular pela renúncia pode ser o caminho para a pacificação dos ânimos. Giammattei não parece disposto a ceder, ainda que a aprovação do orçamento tenha sido suspensa na última segunda-feira (23/11), após protestos do final de semana resultarem em parte do Congresso incendiada por aqueles mais enfurecidos.


Se antes Giammattei alcançou o poder através da indiferença de maior parte da população, agora ele conseguiu ser notado da pior forma possível. Em debate no Congresso sobre o infame orçamento e medidas de restabelecimento da ordem, o deputado governista Rubén Barrios se pronunciou da seguinte forma:


"Dobrar nossos joelhos apenas diante de Deus, e diante de qualquer comedor de feijão ficaremos de pé o tempo todo."

Cartazes com mensagens ao presidente tem sido uma constante nas manifestações guatemaltecas

A população não está exatamente necessitada de combustível para manter vivo seu pedido de renúncia presidencial, mas, se esse fosse o caso, podemos dizer que o governo está trabalhando arduamente para que as manifestações sigam. Fato é que a relação entre governo e povo é cada vez mais conflituosa e a falta de tato do presidente guatemalteco se torna mais evidente a cada nova aparição pública. As sucessivas concentrações de manifestantes nos grandes espaços públicos já tem sido chamadas pela mídia local de Revolución de los Frijoleros — ou Revolução dos Comedores de Feijão, em tradução livre.


Com apoio de lideranças da Igreja Católica guatemalteca, religião da esmagadora maioria da população e intrinsecamente conectada com a Teologia da Libertação, os protestos seguem frequentes e pressionando o governo a negociar sob as condições dos tais comedores de feijão. O futuro ainda é incerto, mas o povo já conquistou a façanha de ser notado e dessa vez parece ter mais o futuro do país em suas mãos do que no depressivo passado recente.

 

Para saber mais:


- Livro A Revolução Guatemalteca, de Greg Grandin, publicado na coleção Revoluções do Século 20 pela Editora Unesp;


- Livro Guatemala: Ensayo General de la Violencia Política en América Latina, de Eduardo Galeano, publicado originalmente em espanhol pela editora Siglo Veintiuno;


- Matéria 'A incapacidade moral' na América Latina, de Francisco Sánchez para a Folha de S. Paulo;


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