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  • Foto do escritorCesar Henrique de O. Costa Jr

América Latina e Caribe: uma identidade de coexistência em constante transformação

É possível falar na existência de uma América Latina?


Partindo de uma perspectiva hegemônica, a região tem sido tratada como um bloco de certa forma homogêneo e de importância marginal no mundo. A justificativa é tanto o passado colonial comum que une os países da região a partir de uma herança cultural europeia quanto o subdesenvolvimento econômico e sociopolítico proveniente desse passado. Para alguns autores, geralmente do Norte Global, esses argumentos são suficientes para definir a região e fornecer respostas para muitos de seus problemas contemporâneos. 


Está claro que a chegada dos europeus e todo o processo de colonização deixaram marcas profundas que estão presentes até hoje na região. E isso, por si só, produz uma aproximação social, histórica e cultural para além da geográfica. Por outro lado, esse tipo de visão ignora o vasto mosaico de culturas, idiomas e tradições que têm coexistido e buscado algum espaço na correlação de poder. Partindo dessas premissas, este ensaio fará uma breve reflexão sobre se é possível pensar em uma identidade comum para a ideia de América Latina e seus projetos estatais.


Uma identidade de coexistência em constante transformação


O continente americano, em geral, foi visto como uma continuação da sociedade europeia no chamado "Novo Mundo" por seu processo de colonização. É, partindo dessa premissa que se constituiu o conceito de "Ocidente", para englobar os territórios europeus e americanos que, supostamente, compartilhavam de uma mesma cosmovisão de mundo. Isso pode ser visto na prática, quando analisamos os currículos escolares de muitos países da região, como o nosso, onde até recentemente a estrutura inicial da disciplina de história brasileira se iniciava com a chegada dos portugueses batizada de "descobrimento". Assim, tanto os povos indígenas que já ocupavam o território quanto a chegada de todas as outras culturas que vieram depois, passam a ser estudada sob uma perspectiva marginal da visão portuguesa.


Contudo, esse tipo de visão comum foi importante para justificar essa aproximação sobretudo em um período histórico marcado pela geopolítica da Guerra Fria. Entretanto, o nome América Latina parte de uma perspectiva de criar uma divisão. Por um lado existia a "América", sob a perspectiva estadunidense, seu próprio território que representava o desenvolvimento e a potência mundial que agora liderava este "bloco ocidental". Por outro lado existia, a "América Latina" que por uma herança "latina", que proporcionou diferenças em seu processo colonial, gerou Estados subdesenvolvidos até os dias de hoje. Portanto, a ideia de subdesenvolvimento esta atrelada ao nascimento do conceito em si e que está justificado na matriz cultural comum de como ocorreu o seu colonialismo.


Desde o início deste milênio, com a chegada ao poder de líderes mais identificados com grupos historicamente marginalizados na chamada região, se abriu espaço para outras cosmovisões ganharem força. Estas trouxeram novos projetos políticos que colocaram outras epistemologias em evidência na região, questionando essa visão historicamente hegemônica. É quase pela primeira vez, desde a independência formal dos Estados latino-americanos, que nos encontramos com projetos políticos relativamente independentes das potências europeias e do poder hegemônico "ocidental".


No entanto, a verdade é que muitos desses projetos sempre estiveram presentes na constituição regional, mas estavam presentes em pensamentos considerados marginais e, portanto, descartados. Tanto os povos indígenas quanto os africanos trazidos à força para a região estiveram, durante todo o período colonial, criando seus próprios conhecimentos. Dessa forma, eles foram extremamente importantes na construção dos atuais Estados latino-americanos, mesmo sendo colocados a margem da sociedade ao longo do processo de formação dos mesmos.


O pensador argentino Walter D. Mignolo, conhecido por seu enfoque na colonialidade do poder, nos incita a questionar as narrativas hegemônicas que dominaram a história da América Latina e a considerar novas formas de entender sua identidade em um mundo globalizado. Em seu livro, The Idea of Latin America, the Colonial Wound and the Decolonial Option (A ideia da América Latina, a ferida colonial e a opção decolonial), ele nos apresenta o pensamento decolonial que se baseia fortemente na epistemologia de experiências e pensadores desses povos historicamente marginalizados.


No livro, o autor, com base na pintura de Joaquín Torres-García "America Inverted" (América Invertida), afirma que "embora a inversão da imagem naturalizada da América, com o Sul em primeiro plano, seja um passo importante, não é suficiente". Ainda segundo o autor: "O conteúdo é alterado, mas não os termos do diálogo". Com isso, ao longo de seu texto, ele introduz o paradigma decolonial da coexistência, que seria muito antigo e teve sua criação no pensador indígena Guaman Poma, ainda no período colonial, quando escreveu um livro ao rei espanhol para lhe mostrar uma maneira de criar um "Buen Vivir" entre as duas epistemologias presentes: a indígena e a europeia.


Aqui, parece interessante refletir sobre como Mignolo, ao mostrar que um pensador indígena ainda na época colonial tentou formular um modelo de coexistência entre visões de mundo muito diferentes para que pudessem conviver em um processo subjetivo de interculturalidade, ou seja, em um equilíbrio de poder, mostra até que ponto o conhecimento de muitas dessas populações marginalizadas não foi valorizado. Da mesma forma, sua posição nos mostra como essas culturas não pretendiam partir do pressuposto de que sua perspectiva era superior à outra, como fizeram os europeus, mas sim que era uma maneira diferente de analisar o conhecimento.


O pensador, também argentino, Néstor García Canclini explora como as influências globais interagem com as locais, dando origem a uma rede rica e complexa de identidades híbridas. De acordo com o autor, as identidades culturais são o resultado de um processo constante de mistura e combinação de elementos culturais locais com influências globais. Esse processo de hibridização cultural implica que a identidade latino-americana não pode ser entendida em termos estáticos ou essencialistas, mas é dinâmica e fluida.


Partindo destas ideias, podemos observar que há dois elementos fundamentais para a compreensão de uma possível identidade americana comum: a coexistência de diferentes epistemologias e a identidade híbrida. E que um elemento não anula o outro, se não se complementam. Porque, embora seja verdade que há diferentes epistemologias que coexistiram na região ao longo da história, essa coexistência é produzida pelo distanciamento, mas também pela mistura entre elas, produzindo não apenas um cruzamento social e cultural, mas também epistemológico.


Por que América Latina e Caribe?


Com tudo isso, é possível entender a América Latina como um espaço onde coexistem diferentes povos, separados e misturados ao mesmo tempo. Porém, podemos dizer que isso é uma marca do continente americano como um todo. Então, porque falar de uma América Latina e Caribe é importante?


O elemento fundamental para essa equação é o mesmo motivo pelo qual o Norte Global em si fez questão de separar as américas. O elemento da desigualdade é a grande chave de união de coexistência de todas estas cosmovisões existentes ao sul. Afinal, embora diferentes, tanto as epistemologias distantes quanto as híbridas buscam maior representação material e subjetiva a nível interno aos Estados constituídos na região e a nível global. Elas compartilham um senso comum de como é a vida em seus territórios altamente explorados e oprimidos seja pelo colonialismo externo ou interno. Como resume a música "Latinoamérica" do grupo porto-riquenho Calle 13: "Yo soy Latinoamérica, un pueblo sin piernas, pero que camina..." (Eu sou América Latina, um povo sem pernas mas que caminha).


Portanto, diante desse panorama, me parece fundamental sempre ter em conta que um pensamento latino-americano autônomo sempre vai partir do ponto de vista do oprimido na distribuição de poder no continente americano. É uma identidade que vai para lá de uma proximidade cultural, parte da posição onde se está nessa equação. E se é a desigualdade que nos une, apesar da importância em manter a nomenclatura conectada a cultura, não é possível não incluir o Caribe em termos geográficos e culturais nessa conta. Pois, independente de uma questão linguística, compartilhamos questões culturais muito mais profundas marcadas em uma história de desigualdade que nos aproxima.


Transformando preservamos


É evidente que grande parte do progresso recente das populações marginalizadas está centrada na criação de um espaço de bem-estar baseado no princípio da coexistência e apoio mútuo na luta por um maior espaço. Esse discurso também está encontrando expressão nas posições de alguns países da região, que as estão adotando como posições geopolíticas, especialmente em questões ambientais.


Na última Assembleia Geral da ONU, embora de formas diferentes, houve proximidade nos discursos de países latino-americanos de destaque que atualmente têm governos progressistas, como o Brasil e a Colômbia. O presidente colombiano, Gustavo Petro, falou sobre a cosmologia indígena latino-americana e seu conceito de "Buen Vivir" ao se referir à questão ambiental. Esse tema também esteve muito presente no discurso do presidente brasileiro que defendeu o papel estratégico da região no desenvolvimento sustentável que o mundo precisa em função das questões climáticas.


É possível perceber, portanto, que há uma proximidade no discurso que mostra pensamentos autônomos e comuns sobre o desenvolvimento latino-americano e sua avaliação do mundo. Além da desigualdade, a questão da situação climática é um elemento comum em ambos os discursos. O fato de a América Latina ser dotada de inúmeros recursos naturais, como minerais essenciais e água potável. Juntamente com o fato de ser uma das regiões mais ecológicas do mundo, ela pode ser um elemento-chave na geopolítica da atual situação global. Assim, a oportunidade para essa convergência do pensamento latino-americano pode estar crescendo.


Portanto, para concluir, a possibilidade de um bem comum entre toda essa variedade epistemológica e a convergência do pensamento latino-americano depende de eles perceberem que é precisamente essa capacidade de coexistência e hibridização que constitui sua maior força. Uma força que pode ser usada a seu favor na atual conjuntura geopolítica global do limite imposto pelas condições climáticas ao modelo socioeconômico hegemônico. Se assim for, ela poderia criar seus próprios modelos sociopolíticos autônomos e talvez até exportar grande parte de sua produção de conhecimento para o resto do mundo.



Bibliografia:

 

Cairo, Heriberto (2009). “América Latina en los modelos geopolíticos modernos: de la marginación a la preocupación por su autonomía”. En: Heriberto Cairo y Jussi Pakkasvirta (Comps.) Estudiar América Latina: retos y perspectivas, pp.11-43, San José, ELAM.  

 

Calle 13. Latinoamerica

 

Canclini, Néstor (2002). “De los inconvenientes de ser latinoamericano”. En: Néstor García Canclini, Latinoamericanos buscando lugar en este siglo, cap. 2, Buenos Aires, Paidós.

 

Mignolo, Walter (2007). La idea de América Latina: la herida colonial y la opción descolonial, cap. 3, Barcelona, Gedisa.

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