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  • Foto do escritorTomás Paixão

O que a história pode nos ensinar? A Missão Macartney e a produção de vacinas no Brasil

Atualizado: 10 de ago. de 2023

Na última quarta-feira, 20 de janeiro de 2021, um sopro de esperança para milhões de brasileiros. Depois de 9 meses de uma pandemia que já deixou mais de 200.000 mortes no país, o processo de vacinação teria início em diversas cidades do Brasil. Nas mídias sociais, políticos, artistas e jornalistas se uniam para comemorar uma vitória da ciência frente ao obscurantismo bolsonarista. O presidente, evidentemente incomodado com o destaque dado à atuação de João Dória na obtenção da vacina, declarava em entrevista que não haveria mais possibilidade de discussão: a Anvisa aprovou e o Brasil seria vacinado com a CoronaVac.


No último domingo (17) em São Paulo, logo após a autorização da Anvisa, a enfermeira Mônica Calazans, de 54 anos, foi a primeira brasileira a ser vacinada contra a COVID-19.

Um provérbio chinês nos ensina, porém, que se o vento soprar de uma única direção, a árvore crescerá inclinada. A esperança da liberação do uso emergencial da CoronaVac e da Oxford-AstraZeneca rapidamente seria rapidamente substituída pela preocupação com a baixa quantidade de vacinas disponibilizadas para a população. Atualmente, o Brasil conta com 6 milhões de doses de vacinas liberadas para uso e ainda espera obter 2 milhões de doses vindas do Instituto Serum, na Índia. Infelizmente, a quantidade não é suficiente nem mesmo para imunizar a população prioritária na 1º fase de vacinação.

A falta de um plano nacional estruturado de combate ao Coronavírus desde o início da pandemia também nos deixaria à mercê para a obtenção de diversos itens como seringas, agulhas e cilindros de oxigênio. Além disso, para a produção das vacinas em larga escala por meio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Butantan, necessitamos de um componente que aparece todo o dia nas manchetes de jornal: o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA).

O IFA, substância que confere a atividade farmacológica à vacina ou a qualquer outro medicamento, é fundamental para a produção da CoronaVac e da Oxford-AstraZeneca em território nacional. Os maiores fornecedores da matéria-prima são a Índia e a China, inexistindo no Brasil uma política governamental abrangente de produção deste ativo e tornando o país extremamente dependente dos gigantes asiáticos. Em meio à essa dependência, o Brasil se vê diante do enorme desafio de convencer os chineses da compra rápida de milhões de quantidades da substância em um curto espaço de tempo.


Bolsonaro e o Embaixador da China no Brasil, Yang Wanming.

Os últimos meses de relação com a China, porém, estiveram longe de serem tranquilos. No governo Bolsonaro, o tom confrontador do presidente e de seus aliados geraram diversos atritos com Pequim, de modo que outros atores têm surgido como interlocutores para garantir o fornecimento do IFA. Em meio a este conflito, Fiocruz e Instituto Butatan já assumem que o calendário de entrega das vacinas devem ser adiados pelo atraso no envio do insumo pela China.



Em entrevista ao Estadão nessa semana, o diplomata Fausto Martha Godoy aponta que a demora na negociação de insumos entre Brasil e China se deve especialmente por este atrito. De modo ainda mais direto, Fausto aponta que:

“O governo chinês tem atualmente tremenda má vontade em relação ao Brasil. A China se recuperou do que passou, mas eles têm um conceito de honra muito importante, é um dos pilares de sua estrutura. O governo brasileiro cutucou a honra desse país e isso não vai sair de graça.”

Outros momentos históricos também já evidenciaram a importância do conceito de honra nos processos negociais com o governo chinês. A Missão Macartney, fundamental para a compreensão das relações entre a China e o Ocidente e para entender os possíveis resultados da forma como vem se construindo o diálogo sino-brasileiro, é um destes momentos.


A Missão Macartney


Em 1793, o diplomata inglês George Macartney já era um homem bem experiente. Com passagens por Espanha, Rússia e Índia, foi incumbida ao estadista uma tarefa importantíssima para as pretensões britânicas na Ásia: a primeira missão diplomática do Reino Unido com a China. Mesmo sem conhecer profundamente os aspectos culturais e negociais locais, as expectativas do enviado inglês para o sucesso de seus serviços no Império do Meio não podiam ser melhores.


Os objetivos eram claros. De forma geral, o Reino Unido apresentaria seu grande leque de produtos aos chineses, pediria autorização para navegar em novas rotas marítimas e proporia a criação de uma embaixada permanente em Pequim e a abertura de novos portos para o comércio internacional. Diversos povos europeus já haviam estabelecido relações muito anteriores com o país asiático e, em casos como os missionários jesuítas no fim do século XVI e XVII, desenvolvido uma troca de conhecimentos e contatos bastante significativa.


A China dos 1600s também obviamente não era a mesma de 1800s. Mesmo antes do começo do imperialismo na região, a grande potência chinesa – que tanto era admirada pelos missionários que a visitavam – entraria em um processo de crise econômica e social, apoiada sobretudo pela superpopulação, escassez de alimentos no país e corrupção do mandarinato. Os costumes, porém, continuariam a exercer uma influência gigantesca sobre seus governantes. O valores promovidos pelo Confucionismo estavam enraizados na sociedade chinesa e não era uma crise que destruiria milhares de anos de tradição.


O kowtow, parte do cerimonial da condução das negociações com os povos estrangeiros, era um destes costumes. Os embaixadores que se apresentavam ao Imperador deveriam prostar-se de joelhos em frente a ele, como sinal de respeito ao governante chinês. A simples, porém significativa ação, apesar de ter sido seguida por comerciantes portugueses e holandeses no passado, traria grandes complicações ao sucesso da missão britânica.


Macartney acreditava fielmente na superioridade do Império Britânico perante às outras nações no mundo. Como diplomata, porém, havia decidido que só poderia cumprir todos os cerimoniais de uma determinada tradição cultural se os oficiais estrangeiros realizassem ações similares em homenagem a seu governante. Macartney presumiu que poderia executar relações diplomáticas com a China da mesma forma que fazia com os europeus. Para ele, fazer o kowtow seria afirmar que o rei da Inglaterra era inferior ao imperador chinês.


O kowtow, no entanto, não era um símbolo da arrogância dos chineses. Como afirma Sana Shakir (2019), o simbolismo costumava ser performado como forma de preservar a ordem moral e social, valor muito importante para o Confucionismo. Como eles estavam solicitando favores ao Imperador, era natural para os chineses que esse ritual devesse ser cumprido. Não foi à toa que, logo após a visita, o Imperador enviaria um édito ao rei George III explicando que o país não precisava de nada proveniente de outras nações e, portanto, não tinha interesse em aumentar o comércio exterior.


A Missão Macartney durante a dinastia Qing é tida como ponto de transformação na forma como a China era vista pelo Ocidente. Até então, por consequência das missões jesuíticas, a nação era vista com bons olhos, mas a partir do fracasso da Missão, passou a ser tomada como uma nação arrogante, isolada em si mesma e não receptiva às ideias do Ocidente. O problema diplomático vai ser também um dos pontos de partida que levará à Guerra do Ópio e o início do imperialismo britânico na China.


As lições a serem aprendidas


A Missão Macartney traz um convite para os diplomatas e negociadores brasileiros refletirem sobre os processos negociais chineses. A importância do respeito às tradições e aos costumes deve ser encarada como fator primordial ao sucesso na obtenção do IFA e da realização de futuras negociação com as contrapartes do gigante asiático.

Desde o ínicio do Governo Bolsonaro, o relacionamento com a China tem sido extremamente conflituoso. Mesmo que o Estado chinês represente a maior parte dos importadores de produtos brasileiros, a má condução das relações diplomáticas sino-brasileiras pode trazer resultados que. tanto a curto quanto a longo prazo, podem ser ainda mais prejudiciais ao país. Se Bolsonaro e seus principais interlocutores querem tomar à frente das negociações, é necessário que abram seus horizontes e aprofundem seus conhecimentos para compreender não apenas os traços culturais chineses, mas também a própria nova geopolítica da vacina. O negacionismo da ciência e as teses conspiracionistas globalistas de nosso chanceler, Ernesto Araújo, indicam, porém, que as tratativas devem continuar a gerar atritos.


Este processo não significa abandonar a defesa da autonomia do pais e “ficar de joelhos” para os arbítrios chineses. As negociações desenvolvidas pela Fiocruz e o Instituto Butantan com laboratórios chineses são provas fidedignas disso. Tradicionais parceiros de instituições provenientes da China, a negociação de transferência de tecnologia de produção do IFA como contrapartida às compras das doses vacinais e dos testes realizados no Brasil, pode ser avaliada como um bom caminho de interlocução para um resultado positivo aos dois países. Do mesmo modo, não significa aceitar todas as pressões chinesas, como a pressão para a demissão de Ernesto Araújo – apesar da mancha que vem deixando na renomada história diplomática brasileira, sua demissão deveria acontecer por outros fatores, e não este.


O americanismo trumpista da política externa brasileira, sem ter trazido praticamente nenhum resultado ao nosso país, deixou diversas feridas que dificilmente serão apagadas. A vacina é a esperança para que tenhamos ao menos um pouco mais de tranquilidade nos próximos meses, à medida que, atualmente, mais de 1000 famílias choram pela perda de seus entes queridos todos os dias pela pandemia de COVID-19. A mudança nos rumos da diplomacia brasileira devem ser acompanhados dos exemplos históricos e lições que aprendemos a partir dos erros e acertos que tivemos no passado.

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