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  • Foto do escritorFelipe Vidal

A complexa relação entre colonialismo, globalização e seus reflexos no esporte das massas

Atualizado: 17 de nov. de 2020

Sem intenção de entrar nos meandros da discussão sobre a validade da alcunha de país do futebol para o Brasil, podemos ainda assim considerar indiscutível nossa condição de protagonista histórico nesse esporte. No entanto, com raras exceções, geralmente simbolizadas pela eterna briga entre o charme do futebol tradicional e as nababescas arenas do futebol moderno, o esporte ainda é, em suas relações comerciais, um mero reflexo das desigualdades socioeconômicas que o mundo preserva.


É óbvio que, como brasileiros que somos, nos virá à cabeça imediatamente exemplos como a boa e velha rivalidade Brasil e Argentina supostamente refutando o parágrafo acima. Lembro então que ao adentrarmos os rincões africanos e asiáticos, incluindo o Oriente Médio, é raríssimo encontrarmos um torcedor que não tenha sua paixão dividida entre um clube local e um gigante europeu, quando o primeiro existe.


Dito isso, estamos aptos a trazer o debate para o curioso caso das naturalizações e ascendências que marcam toda a carreira de atletas pelo simples ato de poder escolher representar a nação A ou B. Vale ressaltar que a questão não se restringe ao futebol, mas é um tanto instigante a oportunidade de aplicarmos a análise ao maior torneio esportivo do mundo: a Copa do Mundo FIFA.

Podemos dizer que, se a globalização fosse de fato um rival a ser combatido, a mesma tem pelo menos uma vitória significativa a cada quatro anos.

O fato é que todo ano de torneio somos inundados com as pautas jornalísticas que se propõem a contar os estrangeiros que representam nações das quais não são nativos, ao menos sob o ponto de vista da naturalidade.


O caso francês na Copa do Mundo FIFA de 2018


Muitas são as alegações de que o título francês foi conquistado por uma seleção cheia de gringos, uma vez que nada menos do que 19 jogadores daquela equipe têm ascendências estrangeiras, restando apenas quatro sem laços familiares próximos no exterior. O tema é um tanto espinhoso, pois na verdade é um mero espelho do embate naturalidade versus naturalização, ou seja, uma questão identitária complexa e distante de se restringir ao campo e bola. Para muitos, os naturalizados traem suas raízes ao defenderem outra nação, mas para outros tantos é o exercício de um direito legítimo e/ou até mesmo uma conquista poder vestir a camisa de sua suposta preferência afetiva.


Contudo, trago para a mesa algo que talvez seja surpresa para os menos versados no esporte bretão: apenas dois jogadores franceses daquele time são naturais de outro país. O fato é que enxergar negros, árabes, latinos e ibéricos como não-franceses naquele caso teve muito mais a ver com os preconceitos enraizados numa sociedade globalizada, porém ainda reticente quanto aos efeitos disso. Em outras palavras, é como se a necessidade de recordar a ascendência de determinados nomes do elenco, mesmo que muitas vezes distante, servisse como uma justificativa para suas inconformidades para com o padrão estético esperado pela audiência ordinária de um evento de alcance mundial.


O Sul Global e a adaptação ao sistema


Se a fuga de talentos locais para grandes centros mundiais de futebol acaba esvaziando as chances de sucesso de algumas nações, muitas vezes já precárias no incentivo financeiro ao esporte, a resposta a essa política predatória tem sido um tanto curiosa. A lógica é simples: se a todo momento precisamos deixar claro que existem atletas europeus, não-europeus e meio-europeus, o mesmo tem que funcionar para os dois lados. Se trata quase de uma extensão da dualidade entre copo meio vazio e meio cheio, pois se certos jogadores são repetidamente referidos como europeus de ascendência estrangeira, sob a ótica do Sul Global o mesmo atleta pode ser chamado a representar suas raízes — por vezes distantes — tão inerentes quanto sua naturalidade.


Seguindo essa linha de raciocínio, no mesmo torneio vencido pela França tivemos um verdadeiro recall da diáspora, com seleções menos tradicionais no esporte sendo quase inteiramente formadas por atletas nascidos fora do país. O caso que mais chama a atenção é o de Marrocos, com 17 atletas naturais do exterior e oito deles da mesma França supracitada. Inevitavelmente chegamos ao segundo tópico importante de todo esse debate: a toxicidade do colonialismo na construção da própria identidade. No mesmo caso marroquino, o que se vê não é oportunismo e nem ingratidão por parte dos atletas que representam aquela camisa, mas sim uma convicção de pertencimento àquele povo, tanto por questões afetivas quanto por certeza de não pertencimento ao lugar onde nasceram.


O caso chinês na prática de clubes


Abandonando por hora as seleções nacionais, não encontramos uma situação muito diferente no meio dos clubes, os quais costumam precisar respeitar limitações de estrangeiros no elenco e frequentemente se utilizam das naturalizações para adaptar os elencos. Levando essa prática ao extremo e replicando a postura desenvolvimentista do governo daquele país, clubes chineses de futebol tem formado verdadeiras legiões de estrangeiros nos últimos anos, a fim de criar a cultura do esporte por lá. As contratações não se limitam a atletas, incluindo também equipes técnicas inteiras. Algumas curiosidades rondam esse contexto e valem a pena o destaque: os goleiros precisam ser chineses e cada elenco tem direito a seis jogadores estrangeiros, porém somente cinco por partida e quatro em campo simultaneamente.


A agressividade na corrida pelo progresso do futebol local é tanta que leva corriqueiramente as cifras de contratações às alturas, levando clubes chineses ao seleto rol de pouquíssimos clubes europeus capazes de competir financeiramente pelos maiores nomes do futebol mundial, ainda que não seja muito sedutor do ponto de vista esportivo. Falando nisso, a disputa entre os lados financeiro e esportivo nos leva ao terceiro tópico relevante desta análise: será o capitalismo capaz de sufocar as individualidades das identidades nacionais?


Não acho que sejamos capazes de dar essa resposta por hora, mas vale lembrar que esse debate já não se restringe mais ao escopo da relação Norte-Sul. O caso que mais chama atenção recentemente é do avanço na estratégia chinesa de recrutamento estrangeiro, dessa vez numa tentativa de acelerar o alcance de resultados por parte de sua seleção nacional. Lembra-se de quando chamamos o Brasil de país do futebol no início da reflexão? Aparentemente os chineses mantém isso em mente, pois as duas mais recentes aquisições para seu país foram os atletas brasileiros Luo Guofu (洛国富) e Ai Kesen (艾克森). Provavelmente sua primeira impressão é de que, baseado nos nomes, ambos devem ter ascendência chinesa e estamos ciclicamente voltando ao primeiro caso estudado, mas a verdade é que ambos precisaram abdicar de suas nacionalidades brasileiras e adotar um nome no idioma local em prol do recebimento de passaporte chinês, conforme manda a lei local. Sem nenhum juízo de valor, deixo a última discussão para sua mesa de bar: sete anos morando em outro país e uma proposta robusta de benefícios financeiros seriam suficientes para abdicar de sua nacionalidade?

 

Para saber mais:


- Artigo Considerações sobre a Migração, a Naturalização e a Dupla Cidadania de Jogadores de Futebol, de Daniel Vidinha, Luiz Carlos Rigo e Gustavo da Silva Freitas, disponível no portal Ludopédio;


- Artigo A Importância do Futebol como Instrumento da Geopolítica Internacional, de Thiago Canettieri, também disponível no portal Ludopédio.

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